Por Carolina Meyer, de Paris
Revista Exame 22.03.2007
O dia mal clareou e 23 executivos da montadora francesa Renault já se reúnem num enorme galpão no moderníssimo centro de engenharia e design da empresa, o Technocentre. Localizado em Guyancourt, nas cercanias de Paris, o complexo de prédios envidraçados abriga o coração da Renault. É de lá que sairão os 26 novos modelos que a montadora pretende lançar até 2009. A reunião é das mais importantes.
Dentro de alguns minutos, o brasileiro Carlos Ghosn, que acumula os cargos de presidente da Renault e da japonesa Nissan, deverá decidir se leva adiante um importante projeto da empresa. Sua chegada é aguardada com ansiedade. A enorme mesa de 30 lugares posicionada num dos cantos do galpão permanece desocupada. Todos estão em pé, acertando os últimos detalhes da apresentação. Quando Ghosn chega -- às 9h15 --, as conversas cessam. Ele solta apenas um protocolar "bom-dia" e, em seguida, reúne-se com três dos executivos. Rapidamente, colhe as informações mais relevantes sobre a apresentação que será feita. A essa breve introdução seguem-se duas exposições. Uma, no próprio galpão, dura exatos 10 minutos. A outra, que acontece logo depois, numa sala contígua, demora meia hora. Ghosn permanece em silêncio todo o tempo. Ele não faz perguntas nem sequer olha para os lados. Em sua fisionomia, não há nenhum sinal do veredicto que está por vir. Os executivos a seu redor estão visivelmente tensos. Durante as duas apresentações, eles falam depressa, quase sem respirar. Se o trabalho for reprovado, os planos de reestruturação da companhia podem ser atrasados -- o que desagradaria a seu comandante e não seria bom para a carreira de nenhum deles. À direita de Ghosn, Patrick Pélata, diretor de produto e planejamento estratégico da Renault e número 2 da empresa, tece comentários ao pé do ouvido. De maneira objetiva, o brasileiro faz algumas considerações sobre os dados apresentados. O ar da sala parece congelar durante alguns segundos. O clima de ansiedade é quase palpável. Ninguém esboça nenhum movimento. Até que, para alívio geral, Ghosn abre um discreto sorriso e dá à equipe o sinal verde.
Carlos Ghosn é presidente da Renault e da Nissan. Juntas, as duas montadoras faturaram 135 bilhões de dólares e lucraram cerca de 8 bilhões em 2006. Se fosse uma só empresa, a aliança seria a quarta maior montadora do mundo, com mais de 300 000 funcionários
Encontros desse tipo -- tensos, rápidos e decisivos -- têm se tornado cada vez mais freqüentes no cotidiano da Renault. Desde que assumiu o comando da montadora, em abril de 2005, Ghosn tem procurado dar mais agilidade ao funcionamento da companhia -- e seu processo de tomada de decisão é um dos melhores exemplos da marca que deseja imprimir à empresa. "Tomar decisões é o principal atributo de um presidente. O modo como ele o faz influencia as pessoas e o ambiente em que elas trabalham", afirmou a EXAME Ralph Keeney, especialista em processos decisórios da Duke University, nos Estados Unidos. Segundo estimativas do próprio Ghosn, ele chega a tomar até quatro decisões "de peso" todos os dias -- resoluções que podem alterar drasticamente os rumos do negócio, como alocação de investimentos, medidas de controle de custos, lançamento de novos produtos e remanejamento de pessoal. "São sempre decisões muito difíceis", afirmou Ghosn a EXAME. "Sou engenheiro de formação, e isso me ajuda muito. Meu método de análise é bastante científico, calcado na análise de fatos, não em idéias ou suposições."
Para que esse método funcione, Ghosn precisa se dedicar com afinco à coleta de informações e a uma seleção criteriosa dos dados. Na Renault, ele faz ou recebe em sua sala somente 20 ligações por dia. Responde a pouquíssimos e-mails pessoalmente. Visita o Technocentre quase semanalmente (seu antecessor, Louis Schweitzer, passava meses sem colocar os pés lá) e nessas ocasiões conversa com qualquer pessoa que possa lhe dar uma informação importante, independentemente do nível hierárquico. "Certa vez, ele parou para conversar com um trainee sobre o novo Clio", afirma uma funcionária da Renault. Durante um dia comum na montadora francesa, Ghosn chega a participar de cerca de 15 reuniões. Nos encontros com seu pessoal -- tanto na Renault quanto na Nissan -- , exige que as apresentações sejam simples e diretas, e não durem mais do que 15 minutos. "Ao longo da minha carreira, aprendi que não se pode tomar nenhuma decisão em meio a reuniões chatas e intermináveis", afirma Ghosn. Segundo pessoas próximas, o executivo detesta ser informado sobre detalhes. Para ele, o que importa é saber 80% de cada assunto. "Ghosn tem um cérebro privilegiado. É capaz de empacotar centenas de dados ao mesmo tempo e utilizá-los de forma a enxergar o que ninguém vê", afirmou a EXAME Jean-François Manzoni, professor de liderança e desenvolvimento organizacional do Instituto Internacional para o Desenvolvimento da Administração, na Suíça, que já esteve com Ghosn várias vezes, tanto na Renault como na Nissan.
Além de uma incrível capacidade de processamento, Ghosn tem alguns "truques" para ajudá-lo cada vez que precisa tomar uma decisão importante. Em primeiro lugar, procura seguir à risca sua atribulada agenda, não deixando praticamente nenhum espaço para o improviso. Todos os meses, ele dedica uma semana à Renault e outra à Nissan. Boa parte do restante do tempo ele passa a bordo de seu jatinho, modelo Gulfstream V, em viagens por China, Europa, Estados Unidos e América do Sul. Em fevereiro, por exemplo, percorreu uma distância de aproximadamente 25 000 quilômetros e participou de 22 reuniões em quatro países diferentes. Além disso, Ghosn não resolve nada relacionado à Nissan em Paris -- nem decide sobre a Renault no Japão. Faz questão de manter os dois assuntos completamente separados -- e até usa pastas distintas para que os assuntos referentes às duas montadoras não se confundam.
Obedecer a essa disciplina quase militar -- e assim ter uma visão geral do que acontece nas empresas -- é fundamental para que ele consiga dar o segundo passo mais importante de sua estratégia: delegar. "Não cabe ao principal executivo resolver problemas do dia-a-dia. Ele tem de pensar na empresa como um todo", afirma Keeney, da Universidade Duke. Um estudo realizado recentemente por quatro especialistas americanos em análise de processos decisórios com 120 000 empresários e executivos mostrou que, quanto mais elevados na hierarquia, mais os executivos se distanciam do cotidiano da empresa. Com Ghosn não é diferente. As decisões de rotina da Renault e da Nissan são tomadas por um time de 15 executivos recrutados dentro das próprias empresas. "Não decido nada que possa ser resolvido por uma pessoa mais próxima ao assunto", afirma Ghosn.
O estilo Ghosn
A receita do presidente da Renault-Nissan para tomar decisões:
1) Deixar de lado os detalhes
Nas reuniões com sua equipe, Ghosn exige que as apresentações não ultrapassem 15 minutos. Elas devem conter somente o que há de mais importante no projeto.“Do contrário, a discussão fica longa e chata, e não leva a lugar algum”, diz ele
2 )Ter disciplina
O executivo nunca toma decisões relativas à Nissan enquanto está em Paris nem sobre a Renault quando está em Tóquio. Ele mantém pastas diferentes para cada uma das montadoras
3) Delegar sempre que possível
Somente as decisões mais estratégicas — como a definição do Logan como uma plataforma para múltiplos lançamentos — ficam sob responsabilidade de Ghosn. Deliberações sobre o dia-a-dia da empresa ficam a critério de seus executivos
4) Dar um passo de cada vez
Em vez de tomar todas as resoluções de uma só tacada, ele prefere dividir o processo em diferentes etapas — assim, vai tomando várias decisões à medida que a discussão avança
5) Buscar informações com o maior número possível de pessoas (em todos os níveis)
Ghosn passa a maior parte do dia em conversas com executivos do grupo envolvidos nos mais diferentes projetos. Para colher detalhes sobre o desenvolvimento do Clio III, por exemplo, ele conversou até com os trainees da empresa.
Uma vez que as decisões foram tomadas, Ghosn dedica-se a outro de seus grandes talentos: cobrar resultados. "Uma decisão não vale nada se não for implementada", afirma. "Ela é 90% do trabalho." Onde quer que se encontre, ele aproveita para verificar se suas diretrizes estão sendo seguidas -- freqüentemente num tom percebido pelos subordinados como ameaçador. "A pressão muitas vezes é insuportável", conta um ex-executivo da Renault. "Todos trabalham no limite."
No início deste ano, o clima de tensão chegou ao extremo quando vieram à tona três casos de suicídio dentro da montadora francesa em apenas quatro meses -- um deles envolvendo um técnico às vésperas de ser promovido. Um relatório divulgado pela Confederação Geral de Trabalho da França aponta como causa possível (embora não a única) a enorme pressão que os funcionários vêm sofrendo desde o início da reestruturação. Segundo o sindicato, há uma cobrança cada vez maior na empresa para se produzir mais, com mais qualidade e a custos mais baixos. Ghosn criou uma comissão para avaliar as causas dos suicídios, mas reiterou que não voltará atrás em seu plano de ajustes na companhia. "Os franceses não estão habituados a trabalhar num ritmo frenético, eles ainda não digeriram a lógica da globalização", afirma Keeney.
Uma pesquisa recente realizada pela Universidade de Maryland mostrou que a França é o país mais avesso ao capitalismo entre as nações desenvolvidas. "Ghosn está tentando trazer a Renault à lógica do século 21", diz Keeney.
Comandar duas empresas que se encontram em estágios tão diferentes é um de seus maiores desafios. Na japonesa Nissan, a parte mais difícil do trabalho já foi feita. Uma profunda reestruturação implementada por ele seis anos atrás tirou a companhia da bancarrota e transformou-a numa das montadoras mais lucrativas do mundo. O processo, que incluiu a demissão de 21 000 funcionários, rendeu ao executivo o apelido de "matador de custos" e o transformou numa espécie de herói nacional, com direito até a virar protagonista de mangás, as tradicionais histórias em quadrinhos japonesas. Seu crescimento foi ancorado sobretudo no mercado americano, onde a montadora dobrou sua participação para cerca de 8%, segundo a consultoria americana J.D. Power and Associates, especializada no setor automobilístico.
A Renault não se encontra numa crise financeira. O principal problema da montadora francesa é uma certa letargia -- cuja conseqüência mais visível é a perda de espaço na Europa para competidores asiáticos. Em 2006, as vendas da montadora no Velho Continente caíram mais de 10%. Na França, seu principal mercado, a queda foi superior a 5%. A percepção do consumidor é que os modelos franceses são antiquados. No Brasil, um de seus mercados estratégicos, a Renault até agora não conseguiu deslanchar. A fábrica localizada em São José dos Pinhais, no Paraná, gera prejuízos desde que foi inaugurada, em dezembro de 1998. "Para lidar com tamanha discrepância nas duas empresas, Ghosn tem uma espécie de botão liga-e-desliga", afirma um executivo da Renault. "Ele é capaz de decidir sobre o lançamento de um produto numa montadora e sobre uma aliança estratégica na outra, sem titubear."
O plano de Ghosn para tirar a Renault do marasmo foi batizado de Contrato 2009. Lançado oficialmente em fevereiro do ano passado, o projeto prevê um aumento nas vendas da montadora da ordem de 800 000 veículos até 2009 e o lançamento de 26 carros. O objetivo é aumentar para 6% a margem operacional da companhia -- hoje na faixa de 2,5%. "Foram meses conversando com centenas de pessoas", diz Ghosn. "Tive de pesar com cuidado cada ponto desse projeto." Grande parte do sucesso do plano dependerá das vendas do Logan, o carro de baixo custo da Renault. Inicialmente, o Logan foi criado para atender aos países do Leste Europeu. Ghosn, porém, decidiu transformá-lo numa plataforma de múltiplos lançamentos, capaz de atender aos mercados no mundo todo. É dessa base que deve sair quase a metade dos novos modelos que a montadora lançará nos próximos anos.
A aposta de Ghosn
O Logan é o grande trunfo do executivo para melhorar os resultados da montadora francesa. Veja algumas inovações que conseguiram reduzir o custo do modelo, vendido atualmente na Europa por 7 000 euros.
Acabamento padronizado
Nas portas, a borracha utilizada na parte superior foi uniformizada. Na Renault e nos demais carros fabricados na Europa, essas borrachas são específicas para cada lado do carro
Simplicidade
O interior do carro leva peças grandes — chamadas monoblocos. A medida torna a instalação mais simples, rápida e barata (custa até metade do preço dos painéis encontrados em carros europeus, mais sofisticados)
Pouca tecnologia
O pára-brisa tem uma curvatura simples — diferente dos complexos ângulos que caracterizam os carros da Renault
Sem conforto
No modelo básico, não há ar-condicionado nem rádio (itens considerados de primeira necessidade na Europa)
Menos peças
O número de componentes empregado é até 60% menor que nos outros carros da Renault. O Clio, por exemplo, leva cerca de 600 componentes, ante cerca de 200 do Logan
Reaproveitamento
Peças e motores de versões mais antigas do Clio e do Modus, da Renault, e do Micra, da Nissan, foram utilizados no projeto
Embora analistas de mercado e investidores continuem confiantes na capacidade de discernimento de Ghosn -- segundo estimativas dos bancos Morgan Stanley e UBS, a aliança Renault-Nissan deverá vender 6,4 milhões de veículos neste ano, desbancando a Ford do terceiro lugar entre as maiores montadoras do mundo --, o executivo tem enfrentado alguns revezes nos últimos meses. As vendas mundiais da Renault caíram 4% em 2006 e os sinais de uma possível recuperação só devem começar a aparecer a partir do segundo semestre de 2007.
No Japão, a Nissan também acaba de mostrar seu primeiro tropeço. No terceiro trimestre fiscal de 2006, o lucro líquido da montadora japonesa foi 22% inferior ao do mesmo período do ano anterior. Para tentar contornar a crise, o executivo acabou abandonando suas funções como responsável pelas operações americanas no dia 16 de março para dedicar-se exclusivamente à matriz. Os problemas parecem não abalar a incrível autoconfiança de Ghosn. "É um momento delicado, mas nada fora do previsto", diz. Ele avisou que não pretende alterar a estratégia de renovar continuamente a linha de produtos das duas empresas que comanda. "A indústria automotiva vive de lançamentos, e até agora Ghosn acertou nesse ponto", diz um analista de um banco de investimentos estrangeiro, especializado no setor. "Vamos ver se ele vai continuar tomando as as decisões certas."
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