segunda-feira, 28 de maio de 2007

Tome uma atitude

O primeiro e grande campo de batalha de uma empresa é seu mundo interno: a crença em seus valores e os compromissos mútuos com os funcionários
Por Julio Ribeiro - Publicado na Revista Exame


Pense no nome do maior executivo, no mais competente que você conheça. Proponha-lhe o seguinte projeto: suba até o morro da Mangueira e procure arregimentar 10 000 voluntários. Monte, com a colaboração deles, o projeto de um show monumental que envolva a contratação de dezenas de técnicos, estilistas e coreógrafos. Cada pessoa do grupo terá de comprar uma fantasia que custará três meses de salário para usá-la numa única noite. Todas terão de comparecer duas vezes por semana à quadra da escola para ensaiar. Tudo isso sem ganhar nada. Terão de levantar 1 milhão de dólares para pagar as despesas, locomover-se por conta própria para o local do desfile, chegar pontualmente, obedecer cegamente às ordens dos fiscais e, se a escola não ganhar, chorar.

Impossível? Mas elas fazem isso todo ano! Qual a explicação para o sucesso desse processo monumental a partir de quase nenhum recurso, gente de baixo grau de escolarização, moradores de um lugar de alto risco, praticamente sem ajuda de nenhuma entidade externa?
É a atitude das pessoas que compõem o grupo. Todas trabalham motivadas pela alegria e por uma causa: ganhar o desfile. O diretor da escola não precisa fiscalizar a porta-bandeira para saber se ela está ensaiando. O que ela mais quer na vida é realizar um grande desfile e fazer a escola ganhar. Os componentes do grupo querem exatamente a mesma coisa que o presidente da escola. Seus objetivos são comuns. Por isso torna-se desnecessário fiscalizar.
Esse é o princípio do marketing de atitude. É levar as pessoas de um grupo a realizar um projeto com alegria e crença no valor da causa proposta. Existem outras empresas assim? Existem.
Certa vez fui a uma cidade no Arkansas, Estados Unidos, conhecer a matriz de uma empresa. Ao chegar, fui avisado de que no dia seguinte, um sábado, haveria uma reunião às 7 da manhã num cinema local. Perguntei se era brincadeira. "Não! Aqui os funcionários alugam, por conta própria, o cinema da cidade uma vez por mês e se juntam para trocar idéias sobre a empresa." No dia seguinte, o cinema estava lotado. O pessoal cantava. Ao fundo, um telão em que se podia ver por teleconferência outros auditórios, em outras cidades, lotados de empregados. Apresentaram-me o presidente, que também estava dando risada no meio dos outros e vestindo uma camiseta com os seguintes dizeres: My Name Is "No Problem John" Call Me.
Meu sócio comentou: "Isso não é uma empresa, é uma religião". Respondi baixinho: "Mas cresce à razão de 10 bilhões de dólares por ano".
A empresa era a Wal-Mart e a cidadezinha, Bentonville. População: 19 700 habitantes.
A Wal-Mart, fundada em 1962, desenvolveu-se a partir do meio-oeste americano até se tornar a maior empresa do mundo, com faturamento em 2002 de 270 bilhões de dólares (quase 1 bilhão de dólares por dia). Possui 4 602 lojas em dez países, 3 375 só nos Estados Unidos. Aí fica a pergunta básica: por quê? Que fator ou fatores permitiram que uma pequena loja nascida, administrada e desenvolvida no meio do nada se tornasse a maior empresa do mundo?
A Harvard Business Review de novembro de 2002 e a Fortune 500 de março do mesmo ano dedicam parte da edição à explicação do fenômeno. Em ambas as matérias é destacada a atitude de Sam Walton no relacionamento com seus empregados -- chamados por ele de "associados". "Walton instilou em seus 'associados' a idéia de que a Wal-Mart tinha sua própria maneira de fazer as coisas e procurou tornar a vida na companhia imprevisível, interessante e engraçada." Para Walton, o ingrediente mais importante no sucesso da Wal-Mart era a maneira como ela tratava as pessoas. "Se quiser que os funcionários das lojas cuidem bem de seus clientes, você precisa estar certo de estar cuidando bem deles no emprego." A Fortune resume a atitude de Sam Walton diante da Wal-Mart: "Ele foi um evangelista que exortava seus funcionários a vender melhor por meio de preceitos quase bíblicos, como a 'regra dos 3 metros' -- 'cumprimente o freguês toda vez que ele estiver a menos de 3 metros' ". O princípio de gestão de Sam Walton foi "atitude". O resto foi conseqüência. Os especialistas mais e mais estão constatando na história das empresas bem-sucedidas o peso de fatores éticos/ comportamentais, não ligados diretamente a gestão ou vendas.
Outro caso surpreendente: como foi possível ao Boticário, nosso cliente, transformar-se de pequena farmácia de manipulação em Curitiba na maior empresa de franquia de cosméticos do mundo? O Boticário possui 2 200 lojas no Brasil -- 1 300 franqueadas --, 62 em Portugal, quatro no México e 400 pontos-de-venda no Japão. Foi fundado em 1977 pelo empresário Miguel Krigsner. Ele fazia perfumes tão bons que, para poder atender à demanda, abriu uma loja no Aeroporto de Curitiba. Em duas décadas já era uma das maiores empresas de cosméticos do mundo. Como conseguiu? O que O Boticário tinha de diferente? Quando perguntei isso a Miguel, ele disse: "Acreditei nos meus princípios e os apliquei na empresa". Isso incluiu a criação da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza. A fundação comprou uma área de 2 340 hectares e desenvolveu a reserva ecológica de Salto Morato, que mereceu da Unesco o título de Patrimônio da Humanidade.
A empresa possui uma cultura rica em princípios éticos e sociais e se relaciona com seus funcionários e franqueados de forma afetiva e aberta. Todos com quem conversei têm grande orgulho de fazer parte do grupo. E, para terminar, um caso de sucesso espetacular resultante da mudança de atitude dos funcionários de uma empresa. Trata-se da Harley-Davidson. Em 1980, a empresa estava à beira da falência. Tão ruim era a situação que, posta à venda pela controladora (a AMF), não apareceu um único candidato. Por fim, na falta de alternativas, a AMF vendeu-a aos próprios empregados. Naquela altura, a participação de mercado havia caído de 80% para 31%, a empresa acumulava uma imensa dívida e o produto perdia em qualidade, competitividade e tecnologia para as motos japonesas.
Aí veio o milagre. Os mesmos funcionários, participantes ativos da quase falência da companhia, assumiram o papel de salvá-la. Quinze anos depois, a Harley-Davidson era líder de mercado, a marca mais valorizada, e quem havia comprado 100 dólares em ações da empresa em 1986 receberia esse valor multiplicado por 70 em 1998. O que explica essa virada? A mudança de atitude. Os fatos demonstraram que os executivos e os funcionários da Harley tinham a competência para desenvolver uma empresa de sucesso; só que eles não queriam. Depois passaram a querer. A mudança de atitude modificou o destino da empresa e deles mesmos.
Com as crises, mais e mais as empresas estão descobrindo que o uso de soluções velhas para resolver problemas novos é temerário e perigoso. O exemplo mais evidente da obsolescência de métodos é o marketing baseado em vendas e em volume. A teoria clássica de marketing privilegia vendas em detrimento de outros fatores de desenvolvimento da empresa. Desde que haja volume, o lucro é considerado implícito, como o caroço dentro da fruta.
As grandes cadeias de varejo estão no seu papel legítimo: reduzir custos para reduzir preços. Por isso, o quadro não deverá apresentar modificação no futuro próximo. Cabe às empresas encontrar novas soluções para preservar sua rentabilidade e obter qualidade nas vendas. De todas as armas com que a empresa conta para preservar a rentabilidade da venda, a marca é, de longe, a mais eficaz. Qualquer que seja a disposição do revendedor, existem marcas que ele não pode deixar de comprar.
Existem marcas mais fortes que outras. Existem categorias de produto mais rentáveis que outras. Existem mercados mais ou menos promissores. Por trás de todos esses fatores, porém, existem a empresa e a luta pelo seu sucesso. O empresário é o herói da sua própria história. O que se está constatando na análise das empresas vitoriosas é que uma atitude proativa, baseada na crença de seus próprios valores, cria um valor competitivo adicional de grande importância e praticamente ignorado até agora. O primeiro grande campo de batalha é o mundo interno da própria empresa. Em quais valores os funcionários acreditam? São os valores da empresa? Existe algum grau de compromisso mútuo? Isso faz uma enorme diferença. Em diversas pesquisas realizadas pela Talent em lojas de varejo, reiteradamente aparece o mesmo fato: a simples atitude de os vendedores conversarem com os clientes aumenta o valor da compra. Em alguns casos em até 20% do valor médio do tíquete. Isso é marketing de atitude. Considerando que isso é obtido sem nenhum custo adicional para a empresa, 20% de aumento no valor médio das vendas pode representar 50% de aumento no lucro líqui do da empresa. Por outro lado, 90% dos vendedores entrevistados nessa mesma pesquisa consideram que sua participação no ato de vender se restringe a ser cortês com o cliente e a informá-lo sobre as características do produto sempre que consultados. É paradoxal. Por desconhecer ou desprezar esses fatos, inúmeras lojas continuam tentando obter vendas fazendo ofertas de preço e perdendo o lucro.
Os fatos vêm demonstrando também que a atitude da empresa tem a ver com o bom ou o mau resultado de sua publicidade. Através dos anos, sempre me intrigou a questão: por que algumas campanhas maravilhosas não produzem resultado nenhum para o anunciante e campanhas horríveis são altamente eficazes, mesmo que seja por algum tempo? A resposta é que as campanhas não têm o poder de lutar sozinhas contra as condições do mercado. O primeiro pressuposto para aplicar bem as verbas de publicidade é ter um diagnóstico válido do problema. Técnicas inexistentes até há poucos anos tornam isso possível atualmente.
A maioria dos planos de marketing ou campanhas que fracassam tem como razão básica um diagnóstico errado.
O segundo fator é a atitude da empresa ante essa realidade. Aqueles que lidam com o marketing de produtos de consumo sabem que a atitude dos revendedores, sejam eles pequenas lojas, sejam grandes organizações, varia conforme as relações e a imagem do fornecedor. Relações distantes ou antagônicas geram um arrasto adicional no momento de fechar o negócio. Muitas vezes quem cria o antagonismo não é a empresa, mas seu funcionário. Na falta de uma bandeira com a qual se comprometer, ele adota uma guerra própria de auto-afirmação, em muitos casos contrária à visão, aos interesses e à intenção da empresa. A atitude da empresa sempre é medida pelo comportamento de seus representantes. Vale aqui a frase de Sam Walton: "Para o funcionário cuidar bem do cliente, é indispensável a empresa cuidar bem dele".
Se a empresa não cria valores a ser defendidos por seus funcionários, estes irão criar valores próprios, nem sempre convergentes com os ideais da empresa. Se a revenda for neutra ou hostil à empresa, a propaganda não funciona. Nesta época de comoditização, se a empresa e suas marcas não possuírem nenhuma diferença ética, social ou afetiva com seus consumidores, a propaganda não vai funcionar bem. Na verdade, existe outra empresa dentro de cada empresa. Maior, melhor, mais exuberante e mais competente. Despertá-la é o grande desafio desta época de globalização.
* O publicitário paulista Julio Ribeiro é presidente da agência Talent

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Os hábitos fazem o monge

Se o Brasil quer competir na economia global, precisa investir na autonomia e no crescimento das pessoas, diz o autor do livro de auto-ajuda mais vendido nos Estados Unidos, Os 7 Hábitos de Pessoas Muito Eficazes Por Nely Caixeta

São Paulo, 22 de março de 2000 (Edição 710) - Os números falam por ele. O guru da auto-ajuda Stephen Covey é o autor do livro de negócios mais vendido nos Estados Unidos, Os 7 Hábitos de Pessoas Muito Eficazes, que em dez anos foi traduzido para 32 línguas e vendeu cerca de 15 milhões de exemplares. A empresa da qual é vice-presidente, a Franklin Covey Company (resultado da fusão do Centro de Liderança Covey com a Franklin Quest), faturou 550 milhões de dólares no ano passado. Entre seus clientes estão 80 das 100 maiores empresas americanas e mais de 75% das 500 maiores da lista da revista Fortune. A organização, com sede em Provo, no estado de Utah, conta com 4 000 consultores treinados em 44 escritórios de 37 países. Inclusive no Brasil, onde a Franklin Covey começou a trabalhar este mês, com 14 consultores (e-mail: fcbrasil@franklincovey.com).
Não são só os números que falam por Covey. Ele também fala por números. Eis alguns títulos de seus livros e artigos: as coisas mais importantes em primeiro lugar, os sete hábitos de pessoas (e famílias, e empresas, e o que mais vier) muito eficazes, as dez chaves para uma era de mudanças. Quando aponta o que chama de sua realização mais importante, a família, Covey cita o fato de ter nove filhos e 31 netos. Daqui a dez anos, acredita que terá 50 netos e 40 bisnetos.
Mesmo antes de inaugurar a filial brasileira, os ensinamentos de Covey (que colabora com a revista Você s.a.) já chegaram a grandes empresas, como o grupo Pão de Açúcar e o Banco do Brasil. Ele planeja visitar o país em 2002. Tamanha organização da agenda mostra que o guru segue sua própria pregação.

Covey é mórmon e, quando comenta a impressionante tiragem somada de seus livros (perto de 18 milhões de exemplares), refere-se a "um sentimento fascinante de missão". Uma missão familiar, também. O filho Sean adaptou o principal livro de Covey e lançou Os 7 Hábitos dos Adolescentes Muito Eficazes. Será que os netos vão herdar o filão? "Não tinha pensado nisso. Boa idéia", diz Covey. Leia abaixo as 16 perguntas que fizemos a ele.

As empresas exigem que seus funcionários sejam eficientes, flexíveis, tenham uma visão internacional e saibam línguas. Mas não basta ser paranóico no trabalho. É preciso encontrar tempo para suas famílias, viajar e ter um hobby. O senhor não acha que isso acaba se transformando em mais um fator de estresse no trabalho e em casa?

Você acaba de descrever o que nós ensinamos no hábito 3 do livro Os 7 Hábitos das Famílias Altamente Eficazes (editora Best Seller). Nele, dizemos que uma das sensações mais desagradáveis do mundo é perceber que estamos tratando as prioridades da nossa vida - incluindo aí a família - como coisas secundárias. É preciso estabelecer prioridades na vida e ser capaz de dizer não para as coisas que não são importantes. As pessoas gastam a metade do tempo de sua vida fazendo coisas urgentes, mas que não são importantes. Isso acontece porque a maior parte delas não sabe o que realmente conta na vida. No fim, a vida nos ensina que o que importa é a família.

Não é irrealista colocá-la em primeiro lugar na lista das prioridades quando se sabe que a maior parte das pessoas que trabalham fora têm de cumprir ordens e não podem dispor livremente de seu tempo?

Você acha isso? Colocar-se no papel de vítima é uma atitude que examino no hábito 1 (o hábito 1 é: Seja Proativo). Ninguém é vítima de ninguém. Você é o senhor de si mesmo. Há histórias de pessoas que mesmo na prisão conseguiram fazer mudanças extraordinárias. Pense em todos os lugares onde não existe liberdade. Bobagem! As pessoas podem mudar até mesmo as prisões. Uma das primeiras coisas que dizemos no hábito 1 é que é preciso livrar-se dessa mania de posar de vítima. Livrar-se dessa sensação de que você é o produto das circunstâncias. Não é verdade. Você é o resultado de suas próprias decisões e escolhas. Evidentemente, isso não acontece da noite para o dia, mas pouco a pouco você muda as circunstâncias.

Por que a Franklin Covey decidiu instalar uma subsidiária no Brasil?

É uma rica oportunidade de propagar para as organizações e as famílias brasileiras os nossos conceitos a respeito da liderança baseada em princípios. A realidade do mundo atual, com a economia globalizada e as pressões por mais qualidade e custos menores, passou a exigir das companhias a concessão de maior poder a seus funcionários. O Brasil parece que deseja realmente competir nessa economia global e isso muda o jogo. Toda a nossa visão é no sentido de simplificar e tornar mais eficientes as organizações para que possam melhor servir a seus clientes. Se elas realmente quiserem competir na economia global - coisa que o Brasil sustenta que quer fazer -, é preciso focar naquilo que dá mais poder às pessoas e as faz crescer.

Por que é fundamental ampliar a liberdade de ação dos funcionários?
É preciso desenvolver as habilidades e a personalidade das pessoas de toda a organização, de modo que possam tomar contato com as realidades da Nova Economia global. Você precisa estar focado nos seus clientes, precisa ser rápido, eficiente e flexível. Em resumo, é preciso ter uma força de trabalho com poder, uma vez que o controle hierárquico tradicional, de cima para baixo, está se tornando obsoleto. Ou seja, o velho estilo de gestão hierárquica não funciona mais diante das necessidades da Nova Economia global.

Até que ponto as pessoas estão dispostas a trocar hábitos arraigados há tanto tempo por novas idéias?

Mudanças de comportamento são sempre difíceis. Por isso, abordamos essa questão dizendo que o processo de mudança deve ser precedido por uma mudança pessoal. Muitos de nossos clientes tiveram de passar por transformações internas antes de poder iniciar as transformações externas. Quem tentar implantar mudanças sem ter se transformado internamente irá fracassar. Mas o homem é capaz de mudar.
Por que a Franklin Covey faz tanto sucesso?
Porque conseguimos identificar os problemas e os princípios universais que funcionam. Hoje, 75% das 500 maiores empresas listadas pela Fortune são nossos clientes. Trabalhamos em 5 000 escolas nos Estados Unidos. Damos consultoria a todos os níveis do governo americano - na esfera federal, estadual e municipal. Estamos presentes em 30 países e estamos muito ansiosos para fazer a mesma coisa no Brasil. É uma área muito promissora, porque o Brasil deseja exercer um papel de liderança na economia mundial. O Brasil não deseja apenas sobreviver, mas também prosperar. A ética do brasileiro é fazer o melhor e atingir a excelência, mantendo a vida em família de maneira equilibrada.

Em que países o senhor tem divulgado suas idéias?
Faço conferências em todo o mundo. Estive na China em novembro passado. Trabalhei com o presidente da Coréia e com ministros de seu gabinete. Na Índia, usei em minhas conferências princípios do livro sagrado Bhagavad-Gita (O canto do senhor). Estive no Egito há cinco meses e ensinei com base no Corão. Essa é a literatura básica das religiões do mundo. No Egito, falei com ministros do presidente Hosni Mubarak e dirigentes empresariais. Em Bombaim e Nova Délhi, conversei com ministros de estados, congressistas e executivos de empresas privadas.
Suas palestras atingem pessoas assim tão diferentes, de lugares tão distantes?
Isso não faz a menor diferença. A dor é universal e os princípios também. E boa parte das famílias também está se desintegrando em todo o mundo.

Que dor universal é essa?
Os males crônicos e os desafios globais a que me refiro incluem: 1) as pessoas se sentem desautorizadas. Mais de 95% das pessoas acreditam que o seu talento e a sua capacidade não têm sido explorados. 2) Há menos confiança. Quanto tempo é gasto em comunicação improdutiva, conflitos, rivalidades pessoais ou de departamento, jogos políticos, bate-bocas, críticas ou queixas? 3) Não há objetivo ou valores em comum. 4) Estruturas e sistemas não estão propriamente alinhados. Um exemplo: uma empresa pode declarar que promove o trabalho de equipe, mas eles vendem sistemas de compensação de remuneração individual, trabalho competitivo.

Qual é o impacto que essas idéias provocam nas corporações?
Essas idéias estão se propagando como fogo selvagem em todo o mundo. Isso permitirá aos países queimar as etapas do processo de desenvolvimento ocorrido nos Estados Unidos nos anos 70, 80 e 90. A resposta não é focar no modelo americano, mas sim em princípios que são universais. É preciso construir com base em princípios que geram grande confiança dentro das culturas organizacionais e que fazem as pessoas perceber que a liderança é uma questão de escolha, e não do cargo em si.
Quais são esses princípios universais?
São os princípios que confrontam e resolvem o sofrimento, que constroem e corrigem os relacionamentos, tanto no trabalho como em casa. Verdade, integridade, empatia, respeito, compreensão e sinceridade são alguns dos princípios que verdadeiramente curam problemas e mágoas.
Quais foram os exemplos de mudanças mais marcantes que o senhor observou em suas andanças pelo mundo?
Há o caso do presidente de uma grande empresa da África do Sul. Ele ficou exultante depois de derrotar o filho numa partida de monopólio. Era um jogo sem importância. Mais tarde, ele passou a se questionar no íntimo: "O que aconteceu comigo? Tenho fome de poder e quero controlar as pessoas". A partir desse episódio, mergulhou num profundo processo de mudança pessoal. Principal executivo da maior cadeia de varejo da África do Sul, com centenas de lojas em todo o país, ele passou a confiar mais nas pessoas a sua volta e acabou por lhes dar mais poder de decisão. Inclusive aos negros marginalizados pelas políticas de segregação racial do passado. O resultado é que essa empresa se tornou o maior e mais poderoso grupo de lojas de confecções da África do Sul. Tudo começou com a mudança interna de seu principal executivo. As mudanças externas vieram a seguir. Essa história é um dos oito casos que descrevo no livro Vivendo os 7 Hábitos. Cada um mostra como as pessoas conseguiram revolucionar seus negócios, famílias, escolas e governos por meio desse processo de transformação interior.
Quais são, a seu ver, as virtudes e as fraquezas do Brasil?
É um povo extraordinário, com grande tradição de foco na família, sem falar em seus recursos naturais fantásticos. Acho que a fragilidade reside na falta de poder das camadas de baixo da população e no excesso de controle autoritário. Os altos executivos costumam tomar as decisões importantes para todo o resto da empresa. Há problemas também relacionados à questão da confiança. A confiança nas organizações é criada por meio de caráter e competência - no plano individual e organizacional. Do presidente até funcionários de todos os níveis, cada pessoa deve manifestar uma forte personalidade. Em outras palavras, princípio centrado em liderança deve estar dentro da personalidade de cada pessoa, a fim de ganhar crédito e confiança de outros.
Como é possível convencer os chefes de que eles precisam, para o bem das empresas, abrir mão de uma fatia de seu poder e compartilhá-lo com seus subordinados?
Você acabou de descrever o que nós ensinamos nos nossos livros. Para ter o espírito de ganha-ganha, é preciso buscar o que chamo de A Regra de Ouro: ir atrás do benefício mútuo. É preciso raciocinar em termos de "nós", e não mais em termos de "eu". Ou seja, deixar de lado o egocentrismo e investir no trabalho em equipe. Mas para que isso aconteça é necessário ter um ideal sobre o que é certo, qual é a sua visão, qual é a sua missão. Esse é o hábito 2, que eu chamo de começar com um objetivo em mente.
Como o senhor vê o ambiente de trabalho nos próximos anos com o advento da Internet?
Muito dependerá da natureza de cada usuário. Os egoístas vão usar as novas tecnologias para aumentar ainda mais a alienação e reduzir o grau de confiança entre as pessoas. Mas quem se importa com aqueles a sua volta empregará as novas tecnologias para permanecer mais próximo de seus clientes e conferir maior poder para que seus empregados produzam mais. A tecnologia pode ser tanto uma bênção como uma desgraça, mas irá mudar tudo de maneira muito profunda. Quando a infra-estrutura avança, tudo o mais acompanha.
O senhor aplica os seus conceitos de eficiência no seu dia-a-dia? O senhor é hoje melhor marido, pai e avô do que há, digamos, 15 anos?
Não mudei tanto, porque sempre fui muito dedicado à minha família e aos meus filhos. Tenho hoje 31 netos, filhos de meus nove filhos. Nós focamos primordialmente a família. É isso o que importa. Daí a importância do casamento. Sem casamentos fortes, não há famílias fortes. O primeiro laço da sociedade é o casamento. Quando ele se esgarça, o resto tende a se esgarçar também.

O superpresidente

Como o brasileiro Carlos Ghosn, depois de salvar a Nissan do abismo, transformou-a numa das montadoras mais rentáveis do setor automobilístico -- e se consagra como um dos executivos mais brilhantes do planeta
Por José Roberto Caetano

No minúsculo Tar Tar, um dos inúmeros restaurantes encravados no subsolo dos prédios de Ginza, um fervilhante bairro da região central de Tóquio, Ito Hiroyuki, de 36 anos, faz as vezes de dono, cozinheiro, garçom e sommelier. Enquanto sorve de uma taça, ele sugere vinhos aos fregueses, não mais que uma dezena, para acompanhar as massas que prepara. Ao ser indagado se conhece Carlos Ghosn, o executivo brasileiro que comanda a Nissan, a terceira maior montadora japonesa, com receita anual de 56 bilhões de dólares, Hiroyuki arregala os olhos e faz um gesto que demonstra respeito. Por que a reverência? "Porque ele produziu resultados", diz.
A breve expressão de Hiroyuki resume o histórico de sucesso no Japão de Ghosn, um executivo nascido em Rondônia, filho de mãe francesa e pai descendente de libaneses. Tal como Hiroyuki, muitos outros japoneses acompanharam a trajetória de Ghosn nos últimos anos e se tornaram seus admiradores. Em maio de 1999, ele desembarcou no QG da Nissan em Tóquio com a missão quase impossível de salvar do abismo a empresa, castigada por seis anos consecutivos de prejuízo e endividada em 17 bilhões de dólares. Fora enviado especialmente para cumprir essa tarefa pela cúpula da francesa Renault, que acabara de se tornar a controladora, adquirindo 36,6% do capital da Nissan.
A chegada de um gaijin ("estrangeiro" em japonês) para tentar reerguer uma das empresas-símbolo do Japão se deu cercada de reservas -- os próprios japoneses já haviam falhado em três tentativas durante a década. A missão também foi vista com ceticismo por alguns especialistas do setor e considerada a mais arriscada da indústria automobilística mundial. Diante de Ghosn estava não apenas um negócio em acelerado declínio, com produtos envelhecidos e gestão ineficaz, mas ainda uma barreira cultural aparentemente intransponível.
Quatro anos depois, os resultados obtidos por Ghosn vão além da salvação da Nissan. Hoje, ele está à frente de uma das mais rentáveis montadoras do mundo. Ghosn converteu o prejuízo de 5,6 bilhões de dólares registrado em 1999 num lucro de 4 bilhões no exercício concluído em março passado. Com isso, a Nissan está proporcionando aos acionistas um retorno de 19,5% sobre o capital investido. A margem de lucro operacional, um dos indicadores mais importantes das montadoras, alcançou 10,8% sobre a receita -- a média mundial do setor é de cerca de 4%. "A rentabilidade da Nissan é um fenômeno", afirma o americano Stephen Usher, analista do setor automobilístico do banco JPMorgan. "Está próxima à da Porsche, uma fabricante pequena, de supercarros, voltada para um nicho sofisticado." Na bolsa de Tóquio, enquanto o índice Nikkei -- uma média dos papéis das principais empresas cotadas -- caiu 50% de 1999 até o final de março deste ano, as ações da Nissan dobraram de preço.
O valor de mercado da participação francesa no capital, agora de 44%, superou o valor total da própria Renault. A recompensa que Ghosn receberá por ter se saído bem na operação de ressuscitar a Nissan será mais uma missão dura. Ele já está escalado para substituir, em meados de 2005, o suíço Louis Schweitzer no posto de executivo-chefe do grupo Renault. Será uma inversão curiosa. De aposta arriscada para a Renault, a Nissan se transformou, na gestão de Ghosn, na principal fonte de lucro da montadora francesa. O desafio será fazer a Renault, hoje com uma rentabilidade de pálidos 3,3%, ser tão eficiente quanto sua parceira japonesa. Os números da Nissan surpreenderam os cerca de 400 analistas de investimento e 250 jornalistas reunidos em Tóquio no dia 23 de abril para assistir a uma apresentação de resultados. Num salão do luxuoso Akazaka Prince Hotel, Ghosn, um sujeito à primeira vista discreto, se transforma numa espécie de showman. "A revitalização da Nissan é uma realidade", diz ele. "Não só voltamos à competição global como estamos entre os que ditam o ritmo." A consagração perante a mídia e o público é algo a que Ghosn se acostumou. Desde que, já no segundo ano de gestão, conseguiu conduzir a Nissan de volta ao lucro, sua figura passou a ser reverenciada pelos japoneses.
À medida que sua estratégia foi se provando certeira, com indicadores de desempenho cada vez mais sólidos, o culto foi crescendo. Ghosn passou a ser reconhecido não apenas nos escritórios e fábricas da Nissan como em qualquer local público que aparecesse. Pedidos de autógrafo e solicitações para tirar fotos a seu lado se tornaram comuns. Sua vida, suas realizações e idéias serviram de base para a publicação de 12 livros, incluindo uma autobiografia, e um mangá, a tradicional história em quadrinhos japonesa. Ghosn é, afinal, o superpresidente.
Na noite do mesmo 23 de abril, o gaijin Ghosn deu entrevista a uma TV japonesa. A certa altura, a repórter lançou a pergunta: "Se estivesse no lugar do primeiro-ministro Junichiro Koizumi, o que o senhor faria para tirar nossa economia da letargia?" (O Japão enfrenta a taxa de desemprego mais elevada dos últimos 50 anos, com 3,8 milhões de pessoas sem trabalho, o equivalente a 5,4% da população ativa.) Diante da saia-justa, Ghosn saiu pela tangente, como costuma fazer nessas ocasiões: "Não há nenhuma chance de eu vir a ser primeiro-ministro do Japão".
Se a virada da Nissan pode servir de exemplo para uma economia letárgica, é difícil dizer. Mas é certo que Ghosn, aos 49 anos, se projetou como um vencedor -- um dos mais brilhantes e ousados representantes do cada vez mais volátil mercado mundial de altos executivos. Mais que um cortador de custos, ele é um criador de valor. Sua fórmula para reavivar a Nissan, ao mesmo tempo derrubando antigos dogmas locais -- como o emprego vitalício e as relações incestuosas com fornecedores -- e salvaguardando a identidade da empresa, chama a atenção do mundo corporativo dentro e fora do setor automobilístico. Em 25 de abril, a Sony, encrencada com os piores resultados em oito anos, comunicou que Ghosn será um dos conselheiros externos a partir de junho. "Quero humildemente aprender com ele sobre os meios de realizar reformas estruturais e manter a motivação dos empregados", disse Nobuyuki Idei, presidente do conselho de administração da Sony.
Para Ghosn, a entrada no conselho da Sony será a segunda experiência do gênero. Ele já é conselheiro da americana Alcoa, a maior fabricante mundial de alumínio. Lá, tem assento numa mesa comandada por Alain Belda, outro brasileiro que ganhou projeção fora do país. Esse tipo de contato, com executivos e empresários de influência global, é, segundo Ghosn, sua principal fonte de aprendizado e reciclagem. "Nos conselhos posso seguir de perto o que outras grandes empresas estão fazendo, como melhoram a qualidade, como desenvolvem a gestão", diz ele. "Também encontro pessoas como Bill Gates e Michael Dell, e aproveito a oportunidade para saber qual é a base da excelência de cada um." A seguir, algumas das principais lições que o mundo corporativo e os executivos brasileiros podem aprender com Ghosn e o caso Nissan.
A ARRUMAÇÃO DA CASA
Convocado por Schweitzer, Ghosn chegou para comandar a Nissan já com um histórico de reestruturador. Havia sido diretor-geral no Brasil da operação da francesa Michelin, fabricante de pneus, enfrentando a hiperinflação dos anos 80. Em 1991, na presidência da Michelin nos Estados Unidos, conduziu a fusão com a americana Goodrich. Contratado pela Renault em 1996, foi para a França e pegou pela frente a incorporação da Volvo, participando da decisão de fechar fábricas na Europa -- o que lhe valeu o ódio dos sindicatos e o apelido de "matador de custos".
Na Nissan, Ghosn encontrou uma empresa que desde o início da década registrava margens operacionais negativas ou pouco superiores a 1%. No mercado japonês, já havia cedido às concorrentes 15 pontos percentuais de participação desde os anos 70, quando alcançara um pico de 33%. Seus produtos eram considerados envelhecidos e a imagem da marca estava desgastada. Com um sistema de gestão ultrapassado e um endividamento bilionário, a Nissan não tinha saída: ou mudava ou perecia. "Todo mundo estava preocupado e sabia que se nada fosse feito a empresa acabaria. Mas ninguém tinha a capacidade de dizer o que estava errado", diz Norio Matsumura, executivo responsável pela operação na América do Norte. "Ghosn chegou, decidiu a direção, envolveu as pessoas na ação e monitorou os resultados."
Ghosn rapidamente pôs em prática um vigoroso plano trienal de saneamento financeiro e recuperação da competitividade. Batizado de Plano de Renascimento da Nissan, teve como metas, ao mesmo tempo, aliviar o endividamento e levantar recursos para reforçar os ativos que pudessem gerar vendas e lucros. O orçamento para pesquisa e desenvolvimento foi reforçado em 40% em quatro anos, segundo Nobuo Okubo, vice-presidente executivo e supervisor de engenharia e desenvolvimento da Nissan. Enquanto outras áreas enxugavam os quadros, no departamento de pesquisa houve 2 000 contratações. "Não podíamos trabalhar primeiro para reduzir os custos e deixar para crescer depois", diz Ghosn. "Era preciso fazer as duas coisas simultaneamente." Na primeira etapa, porém, prevaleceu o perfil do matador de custos.
Para eliminar o excesso de capacidade, ele anunciou o fechamento de cinco fábricas e o corte de 21 000 postos de trabalho dos 148 000 existentes globalmente em março de 1999. Negócios que não tinham a ver com o foco automobilístico foram passados adiante. À equipe de compras da Nissan, Ghosn impôs a meta de redução geral de 20% no orçamento com fornecedores. Os resultados apareceram logo no primeiro ano do Plano de Renascimento. Em outubro de 2000, Ghosn já pôde anunciar a volta ao lucro. No ano seguinte, todas as metas do plano estavam cumpridas, com antecipação.
PLANO NISSAN 180: A NOVA ETAPA
Reestruturada a operação, Ghosn partiu para a concepção de um segundo plano trienal, anunciado um ano atrás. Focado em crescimento com aumento da rentabilidade, foi batizado de Nissan 180. O número se refere a três compromissos. O 1: a venda global de 1 milhão de carros a mais no ano fiscal de outubro de 2004 a setembro de 2005, em comparação com o volume de 2001. O 8: margem de lucro operacional de 8% sobre a receita. O zero: a anulação da dívida líquida do negócio de automóveis. Dos três compromissos, só resta cumprir o aumento de vendas. Algo pode comprometer a entrega do que Ghosn prometeu? Ele considera apenas fatores externos à empresa como possíveis pedras no caminho: enfraquecimento das economias japonesa, européia e americana e acirramento da guerra de preços nos mercados. "Há sempre o risco, como já ocorreu com outras companhias, de perder a concentração com o sucesso conseguido", diz Usher, do JPMorgan. "Mas a Nissan parece estar focada em sustentar a rentabilidade e se tornar ainda mais forte." Ghosn, por sua vez, não admite que fatores internos possam atrapalhar o rumo da empresa. "Preciso dedicar atenção para que as pessoas não se acomodem e achem que agora podemos dar uma paradinha", diz ele. "Complacência é a primeira coisa que tenho de combater a cada dia."
RESPEITAR A IDENTIDADE E DAR O EXEMPLO
Para superar o ceticismo e o temor com que foi recebido ao assumir o comando operacional da Nissan, Ghosn estabeleceu alguns princípios. O primeiro deles: cada empresa deve preservar a identidade. O tom dado: trabalhar junto, mas de modo que a Renault continue Renault e a Nissan continue Nissan. No envolvimento dos funcionários em torno dos objetivos, Ghosn utilizou o compromisso pessoal -- algo de grande efeito na cultura japonesa. Prometeu publicamente que, se no primeiro ano do plano a companhia continuasse a dar prejuízo, se demitiria juntamente com os membros do comitê executivo. Ghosn também inspirou respeito pela dedicação ao trabalho. Impôs a si mesmo uma jornada que ia das 7 da manhã às 11 da noite.
Pai de três filhas, a mais velha nascida no Rio de Janeiro, e de um menino, ele afirma que já maneirou a rotina. "Agora estou mais regulado, faço o horário das 7 e meia às 9", diz, entre risos. Na fábrica de Oppama, uma das quatro da Nissan no Japão, situada a 65 quilômetros de Tóquio, trabalham mais de 4 000 funcionários, incluindo o pessoal do centro de pesquisa e da divisão de engenharia. Quando souberam que receberiam a visita de Ghosn, um ano e meio atrás, os operários se preocuparam em dar uma geral para tornar a área de produção mais limpa e apresentável. "As pessoas dos escritórios sentem mais a velocidade das mudanças", diz Masahiko Terasaki, gerente administrativo de Oppama. "No chão de fábrica é diferente, quanto mais ocupadas as pessoas, mais motivadas elas se sentem."
Ao longo da linha 2, onde são montados modelos March e Cefiro, ainda estão pendurados peque nos vasos com plantas e bandeirinhas do Japão e da França. O culto a Ghosn é visível. Numa parede se encontra afixado o seu autógrafo numa caricatura feita por um funcionário. No final da linha de montagem, pendem do teto duas grandes pipas, ou takôs, uma com uma figura japonesa tradicional e outra com o rosto de Ghosn. "A maior realização do senhor Ghosn foi reestruturar a mentalidade das pessoas na Nissan", diz Matsumura.
A OXIGENAÇÃO DOS QUADROS E A PREPARAÇÃO PARA O FUTURO
No campo do trabalho, a Nissan de hoje é bem diferente da empresa que Ghosn assumiu há quatro anos. Nada de emprego vitalício. Nada de promoções por tempo de serviço. "O burocratismo e a política de compensação por senioridade eram pontos fracos da nossa empresa", diz Kuniyuki Watanabe, um engenheiro de 54 anos, com 30 de casa e atual vice-presidente sênior de desenvolvimento de recursos humanos. "Ghosn me chamou e disse que teríamos de ser mais flexíveis e passar para um sistema de remuneração por resultados."
Outra diferença é a proliferação de profissionais recrutados fora da empresa, para oxigenar os quadros. Um exemplo é o do engenheiro e relações-públicas Shinji Kuroiwa, de 32 anos, um dos responsáveis pela comunicação internacional da Nissan. Kuroiwa chegou à empresa em janeiro deste ano, vindo da subsidiária japonesa da DaimlerChrysler. "Três anos atrás eu não trabalharia na Nissan", diz ele. "Hoje, ela é mais atraente que a DaimlerChrysler." A Nissan também passou a buscar profissionais nos Estados Unidos e na Europa, como o francês Bernard Long, vice-presidente internacional de recursos humanos, trazido da Renault. "Alguns anos atrás, isso era impensável", diz Watanabe. "Os gestores de uma divisão eram somente pessoas que tinham experiência na própria divisão."
Ghosn combinou a quebra de paradigmas e a injeção de sangue novo com um planejamento para preparar a próxima geração de líderes da Nissan. Está especialmente empenhado nesse programa, voltado para funcionários que hoje têm de 30 a 45 anos e demonstram potencial para se tornar diretores e vice-presidentes. A lista, secreta e reavaliada mensalmente pelo comitê executivo da empresa, é hoje de 500 candidatos, entre os quais japoneses, europeus, americanos e brasileiros. "Quero ter pelo menos 1 000 candidatos para poder fazer uma boa escolha de 30 altos executivos daqui a alguns anos", diz Ghosn. "O critério é o desempenho, o histórico de realizações, e não o fato de ser japonês ou estrangeiro, ser homem ou mulher, ou ter saído de uma universidade famosa." O perfil básico dos candidatos inclui uma experiência de pelo menos cinco anos na empresa, competência comprovada em uma área, vocação para gestão e habilidade para lidar com tecnologia.
Além disso, a indicação de um candidato precisa ter o apoio de pelo menos dois membros do comitê executivo. "Assim, com uma seleção rigorosa, vamos preparando o futuro e transformando a Nissan numa empresa realmente voltada para resultados", afirma Ghosn.
FOCO NA RENTABILIDADE E NÃO NOS VOLUMES
Sobreviver à etapa de corte de custos -- sobretudo sabendo-se como eles foram cortados -- coloca Carlos Ghosn na galeria dos superexecutivos. Mas certamente esse não é seu maior mérito. Melhorar a rentabilidade da empresa: esse sim era o grande desafio. Nos Estados Unidos, a divisão Infiniti da Nissan, concorrente na faixa de utilitários e carros de luxo com BMW, Mercedes-Benz e Lexus, da Toyota, operava até 1999 concedendo altos incentivos aos consumidores para tentar compensar sua imagem de fora de moda. Quatro anos depois, a Infiniti deixou de ser o patinho feio e se tornou a marca que menos incentivo oferece na categoria -- uma média de 700 dólares, enquanto Mercedes e Toyota-Lexus dão perto de 3 000. As vendas da Infiniti caíram? Ao contrário. Com o lançamento de novos produtos, de design modernizado, como a picape Murano, houve um crescimento de 35% no volume de vendas em 2002, para quase 96 000 unidades no varejo. "Nossas vendas são mérito dos próprios produtos", diz Ghosn. "Nossa estratégia continuará a ser otimizar a rentabilidade em vez de maximizar volumes."
A política austera em relação à guerra de preços foi estendida aos carros com a marca Nissan. A média de descontos por veículo oferecida pela Nissan, de 1 500 dólares, é inferior à da Toyota, que cede mais de 2 000. As americanas GM, Ford e Chrysler praticam descontos de 3 000 a 4 000 dólares por carro. "Não queremos vender produtos só pelo preço", diz Matsumura, responsável pela operação nos Estados Unidos. "No passado fizemos isso, mas hoje queremos criar um círculo de valor."
A ORIENTAÇÃO PARA O CLIENTE E A REVITALIZAÇÃO DOS PRODUTOS
Para poder limitar sua política de descontos e fugir da guerra de preços, a Nissan teve de rever a relação com o mercado. "Ghosn estabeleceu dois pontos para nós, a orientação para o lucro e a orientação para o cliente", diz Matsumura. Aos engenheiros, Ghosn determinou que revisassem as especificações das peças, muitas vezes severas demais. "Quando Ghosn nos visitou, disse que a tecnologia deveria servir para o consumidor, não para o engenheiro", afirma Hiroshi Okuzumi, gerente de planejamento do centro de pesquisa da Nissan. "É uma proposta bem razoável."
A orientação de foco no cliente se estendeu tanto à engenharia e ao desenvolvimento dos produtos quanto aos processos de venda e marketing. A Nissan não costumava pesquisar o que o consumidor queria encontrar nos carros. Confiava no reconhecimento de quase 70 anos da marca no Japão e mais de 40 nos Estados Unidos. "Acontece que durante a década de 90, por causa dos problemas financeiros, ganhamos uma imagem negativa", diz Matsumura. "As pessoas foram ficando com a impressão de que não podíamos lançar produtos competitivos." A saída foi começar pelo básico: com pesquisas para identificar o público-alvo e os valores que precisariam ser transmitidos aos clientes. Motores potentes e linhas esportivas mais agressivas, demandas dos consumidores americanos, começaram a sair das pranchetas.
O símbolo do rejuvenescimento da marca Nissan no mercado americano é o conversível 350Z, ou simplesmente Z -- no Japão chamado de Fairlady Z. Trata-se de um lançamento inspirado num campeão de vendas antigo -- o Datsun 240Z, da década de 70, uma espécie de cult para os aficionados de automóveis. "Os carros da Nissan cativam os consumidores porque são como jóias visuais", disse Csaba Csere, editor da revista especializada Car and Drive num recente artigo da revista Newsweek. O Z tornou-se o esportivo mais vendido nos Estados Unidos, com demanda de 23 000 unidades em oito meses de mercado e fila de espera nas concessionárias. Com a boa receptividade a seus novos carros, a Nissan conseguiu em 2002 aumentar em 1% o volume de vendas nos Estados Unidos e no Canadá, para 726 000 unidades -- enquanto o mercado caiu quase 2%. Melhor que isso: o lucro operacional na região cresceu mais de 50%.
Na Europa, contudo, a marca não vai bem. No ano passado, as vendas caíram 3,8%. "O mercado europeu continua a ser um desafio para nós", diz Ghosn. "Mas estamos animados com o lançamento do Micra, feito em janeiro." O maior avanço, por regiões, se deu no Japão, onde a Nissan registrou aumento de 14,3% no ano passado. Nesse período, o mercado japonês teve um esquálido avanço de 1% nas vendas.
O REFORÇO DO DESIGN
· O que mudou para que a Nissan, cujo portfólio estava quase totalmente defasado, passasse a er produtos atraentes num prazo relativamente curto de tempo? "Trouxemos gente da Renault para melhorar o processo de desenvolvimento", afirma Ghosn. O responsável por esse trabalho é o francês Patrick Pelata, a quem foi entregue a chefia da área de desenvolvimento de produtos. "E estabelecemos uma parede entre os centros de design das duas empresas, porque não queríamos que a criatividade da Nissan fosse influenciada pela da Renault", diz Ghosn.
Mesmo preservando a base japonesa, o processo criativo da Nissan tornou-se mais cosmopolita. Além de Pelata, a equipe recebeu, há três anos, o reforço de Shiro Nakamura, projetista com carreira feita nas subsidiárias européia e americana da japonesa Isuzu. Atualmente, Nakamura comanda o centro de design da Nissan em Londres, onde trabalha com 50 modelistas e projetistas de diversas nacionalidades. Os investimentos em desenvolvimento de produtos foram ampliados de 1,9 bilhão de dólares em 1999 para 3 bilhões neste ano. A velocidade da criação foi acelerada -- o prazo para um novo carro sair da prancheta e ir ao mercado foi cortado de cinco para três anos. Nos últimos quatro anos, os centros de design da Nissan desenvolveram 21 novos produtos e reverteram a imagem negativa da marca.
AS VANTAGENS DE UMA BOA ALIANÇA
Há mais um segredo para o aumento da rentabilidade: o compartilhamento de plataformas e componentes. No caso do Z, a plataforma é uma adaptação da empregada no utilitário esportivo Infiniti e o motor é o mesmo do sedã Altima. Numa faixa de volume mais amplo, aproveitando a aliança com a Renault, a Nissan compartilha no modelo compacto March (chamado Micra no mercado europeu) a mesma plataforma do Clio. Dessa forma, as duas montadoras repartem o investimento de 4 bilhões de dólares necessário para o desenvolvimento de uma nova plataforma. Até 2010, Renault e Nissan deverão contar com dez plataformas e oito motores de uso comum.
O compartilhamento de fábricas e estruturas de distribuição é outra forma de sinergia entre a Renault e a Nissan. Para lançar no Brasil, um ano e meio atrás, o primeiro produto montado localmente, a picape Frontier de cabine dupla, a Nissan investiu 170 milhões de dólares, uma quantia relativamente modesta. A solução foi dividir linhas de produção com a Renault em São José dos Pinhais, no Paraná. Na fábrica, com capacidade para 40 000 unidades por ano, são montados lado a lado as Frontier e os furgões Master, da Renault. "Teríamos de gastar quatro vezes mais e demoraríamos mais tempo para operar no Brasil se não fosse a aliança", diz Ghosn. Há duas semanas, a Nissan fez seu segundo lançamento no país, a versão cabine simples da Frontier. Por enquanto, produzir grandes volumes não está em discussão no Brasil. Neste ano, a empresa pretende vender 8 800 picapes no mercado brasileiro. Em junho, a Nissan lançará mais um produto, o utilitário esportivo XTerra.
Se no Brasil a Renault foi o trampolim para a chegada da marca japonesa, no México, onde a Nissan está estabelecida desde meados dos anos 60 e conta atualmente com 20% do mercado, ocorreu o inverso. "Estamos sempre procurando aproveitar a força que o parceiro tem em cada região", diz Toshiyuki Shiga, vice-presidente sênior recém-encarregado de uma divisão global que cobre todos os mercados excetuando Japão, Estados Unidos e Europa. Shiga é membro de um dos times mistos constituídos por executivos da Nissan e da Renault para descobrir sinergias e tocar projetos comuns.
A divisão dos países emergentes, na qual está o Brasil, teve a importância elevada por Ghosn no Plano Nissan 180. São mercados que ele considera que vão crescer muito nos próximos três anos. "Até agora, as prioridades eram Estados Unidos, Japão e Europa", diz. "Precisamos transformar os processos da empresa para que os países emergentes não fiquem sempre sendo os últimos da lista." O sinal do novo status foi a nomeação de Shiga, cotado como um de seus possíveis sucessores (veja quadro acima). Com o novo cargo, Shiga recebeu uma meta: contribuir com 300 000 carros para o objetivo global de vender 1 milhão de unidades a mais em 2005. No ano passado, foram vendidos nos países emergentes 755 000 carros -- 4 400 deles no Brasil. A Nissan também está entrando na corrida para ganhar espaço no mercado chinês, o de crescimento mais rápido no mundo.
Está iniciando uma sociedade para produzir meio a meio com uma empresa local, a Dong Feng. O objetivo é aumentar as vendas da marca de 77 000 carros em 2002 para 550 000 em 2006.
O IMPACTO EXTERNO
Os resultados obtidos por Ghosn na Nissan estão provocando os mais variados impactos. No Japão, segundo um estudo da consultoria Booz Allen & Hamilton, a taxa de demissão de executivos-chefes por falhas de desempenho decuplicou de 2001 para 2002. A consultoria atribui isso à adesão gradual dos japoneses a um estilo de governança ocidental, ajudada por um novo código comercial que encoraja as empresas a ter representação estrangeira em seus conselhos.
O efeito Ghosn é diretamente mencionado. "O renascimento da Nissan, sob a liderança de Carlos Ghosn, persuadiu muitas companhias japonesas de que uma transformação estratégica, benéfica e rápida não é um sonho impossível", conclui o estudo. Na indústria automobilística é possível identificar um contágio de práticas de negócio. "A Nissan se tornou a mais eficiente empresa japonesa em termos de compras, deixou o ambiente competitivo mais difícil e está obrigando a Toyota a repensar as estratégias", afirma Usher, do JPMorgan. Segundo ele, outras empresas, japonesas, européias e americanas, também são influenciadas. "O plano de reestruturação da Ford tem bases parecidas com o da Nissan", diz Usher.
DE UM DESAFIO A OUTRO
Como isso baterá em Paris, onde fica a sede da Renault? Em meados de 2005, quando assumir o comando do grupo francês, Ghosn deverá trombar com novos obstáculos. O sucesso obtido na Nissan não lhe garante uma recepção positiva. "No complicado ambiente corporativo francês, as pessoas vão olhá-lo de um jeito diferente", diz Usher. "Lembrarão que ele reduziu o número de empregos na Nissan, fechou fábricas, mexeu com fornecedores." Ghosn precisará se cercar de um time muito confiável para tocar os planos e as estratégias nas duas empresas ao mesmo tempo.
Para a Renault e a Nissan, a continuidade da união é uma vantagem comparativa que pode valer a permanência no jogo. "A aliança Renault-Nissan é um caso único na indústria automobilística mundial em que a mistura cultural, até agora pelo menos, foi bem gerenciada e está se transformando em resultados significativos", diz Ghosn. "No jogo da consolidação do setor, estaremos entre as empresas lucrativas, que geram valor, e podem ir em frente." Mas os resultados da Renault não andam tão brilhantes quanto os da Nissan, não é mesmo? "Ainda não", diz Ghosn, com uma gargalhada. "Ainda."

Uma máquina movida a razão

No comando da Renault-Nissan, o brasileiro Carlos Ghosn só toma decisões baseado em fatos e números -- e não tem receio de ser impopular
Por Carolina Meyer, de Paris

Revista Exame 22.03.2007

O dia mal clareou e 23 executivos da montadora francesa Renault já se reúnem num enorme galpão no moderníssimo centro de engenharia e design da empresa, o Technocentre. Localizado em Guyancourt, nas cercanias de Paris, o complexo de prédios envidraçados abriga o coração da Renault. É de lá que sairão os 26 novos modelos que a montadora pretende lançar até 2009. A reunião é das mais importantes.
Dentro de alguns minutos, o brasileiro Carlos Ghosn, que acumula os cargos de presidente da Renault e da japonesa Nissan, deverá decidir se leva adiante um importante projeto da empresa. Sua chegada é aguardada com ansiedade. A enorme mesa de 30 lugares posicionada num dos cantos do galpão permanece desocupada. Todos estão em pé, acertando os últimos detalhes da apresentação. Quando Ghosn chega -- às 9h15 --, as conversas cessam. Ele solta apenas um protocolar "bom-dia" e, em seguida, reúne-se com três dos executivos. Rapidamente, colhe as informações mais relevantes sobre a apresentação que será feita. A essa breve introdução seguem-se duas exposições. Uma, no próprio galpão, dura exatos 10 minutos. A outra, que acontece logo depois, numa sala contígua, demora meia hora. Ghosn permanece em silêncio todo o tempo. Ele não faz perguntas nem sequer olha para os lados. Em sua fisionomia, não há nenhum sinal do veredicto que está por vir. Os executivos a seu redor estão visivelmente tensos. Durante as duas apresentações, eles falam depressa, quase sem respirar. Se o trabalho for reprovado, os planos de reestruturação da companhia podem ser atrasados -- o que desagradaria a seu comandante e não seria bom para a carreira de nenhum deles. À direita de Ghosn, Patrick Pélata, diretor de produto e planejamento estratégico da Renault e número 2 da empresa, tece comentários ao pé do ouvido. De maneira objetiva, o brasileiro faz algumas considerações sobre os dados apresentados. O ar da sala parece congelar durante alguns segundos. O clima de ansiedade é quase palpável. Ninguém esboça nenhum movimento. Até que, para alívio geral, Ghosn abre um discreto sorriso e dá à equipe o sinal verde.
Carlos Ghosn é presidente da Renault e da Nissan. Juntas, as duas montadoras faturaram 135 bilhões de dólares e lucraram cerca de 8 bilhões em 2006. Se fosse uma só empresa, a aliança seria a quarta maior montadora do mundo, com mais de 300 000 funcionários
Encontros desse tipo -- tensos, rápidos e decisivos -- têm se tornado cada vez mais freqüentes no cotidiano da Renault. Desde que assumiu o comando da montadora, em abril de 2005, Ghosn tem procurado dar mais agilidade ao funcionamento da companhia -- e seu processo de tomada de decisão é um dos melhores exemplos da marca que deseja imprimir à empresa. "Tomar decisões é o principal atributo de um presidente. O modo como ele o faz influencia as pessoas e o ambiente em que elas trabalham", afirmou a EXAME Ralph Keeney, especialista em processos decisórios da Duke University, nos Estados Unidos. Segundo estimativas do próprio Ghosn, ele chega a tomar até quatro decisões "de peso" todos os dias -- resoluções que podem alterar drasticamente os rumos do negócio, como alocação de investimentos, medidas de controle de custos, lançamento de novos produtos e remanejamento de pessoal. "São sempre decisões muito difíceis", afirmou Ghosn a EXAME. "Sou engenheiro de formação, e isso me ajuda muito. Meu método de análise é bastante científico, calcado na análise de fatos, não em idéias ou suposições."
Para que esse método funcione, Ghosn precisa se dedicar com afinco à coleta de informações e a uma seleção criteriosa dos dados. Na Renault, ele faz ou recebe em sua sala somente 20 ligações por dia. Responde a pouquíssimos e-mails pessoalmente. Visita o Technocentre quase semanalmente (seu antecessor, Louis Schweitzer, passava meses sem colocar os pés lá) e nessas ocasiões conversa com qualquer pessoa que possa lhe dar uma informação importante, independentemente do nível hierárquico. "Certa vez, ele parou para conversar com um trainee sobre o novo Clio", afirma uma funcionária da Renault. Durante um dia comum na montadora francesa, Ghosn chega a participar de cerca de 15 reuniões. Nos encontros com seu pessoal -- tanto na Renault quanto na Nissan -- , exige que as apresentações sejam simples e diretas, e não durem mais do que 15 minutos. "Ao longo da minha carreira, aprendi que não se pode tomar nenhuma decisão em meio a reuniões chatas e intermináveis", afirma Ghosn. Segundo pessoas próximas, o executivo detesta ser informado sobre detalhes. Para ele, o que importa é saber 80% de cada assunto. "Ghosn tem um cérebro privilegiado. É capaz de empacotar centenas de dados ao mesmo tempo e utilizá-los de forma a enxergar o que ninguém vê", afirmou a EXAME Jean-François Manzoni, professor de liderança e desenvolvimento organizacional do Instituto Internacional para o Desenvolvimento da Administração, na Suíça, que já esteve com Ghosn várias vezes, tanto na Renault como na Nissan.
Além de uma incrível capacidade de processamento, Ghosn tem alguns "truques" para ajudá-lo cada vez que precisa tomar uma decisão importante. Em primeiro lugar, procura seguir à risca sua atribulada agenda, não deixando praticamente nenhum espaço para o improviso. Todos os meses, ele dedica uma semana à Renault e outra à Nissan. Boa parte do restante do tempo ele passa a bordo de seu jatinho, modelo Gulfstream V, em viagens por China, Europa, Estados Unidos e América do Sul. Em fevereiro, por exemplo, percorreu uma distância de aproximadamente 25 000 quilômetros e participou de 22 reuniões em quatro países diferentes. Além disso, Ghosn não resolve nada relacionado à Nissan em Paris -- nem decide sobre a Renault no Japão. Faz questão de manter os dois assuntos completamente separados -- e até usa pastas distintas para que os assuntos referentes às duas montadoras não se confundam.
Obedecer a essa disciplina quase militar -- e assim ter uma visão geral do que acontece nas empresas -- é fundamental para que ele consiga dar o segundo passo mais importante de sua estratégia: delegar. "Não cabe ao principal executivo resolver problemas do dia-a-dia. Ele tem de pensar na empresa como um todo", afirma Keeney, da Universidade Duke. Um estudo realizado recentemente por quatro especialistas americanos em análise de processos decisórios com 120 000 empresários e executivos mostrou que, quanto mais elevados na hierarquia, mais os executivos se distanciam do cotidiano da empresa. Com Ghosn não é diferente. As decisões de rotina da Renault e da Nissan são tomadas por um time de 15 executivos recrutados dentro das próprias empresas. "Não decido nada que possa ser resolvido por uma pessoa mais próxima ao assunto", afirma Ghosn.
O estilo Ghosn
A receita do presidente da Renault-Nissan para tomar decisões:
1) Deixar de lado os detalhes
Nas reuniões com sua equipe, Ghosn exige que as apresentações não ultrapassem 15 minutos. Elas devem conter somente o que há de mais importante no projeto.“Do contrário, a discussão fica longa e chata, e não leva a lugar algum”, diz ele
2 )Ter disciplina
O executivo nunca toma decisões relativas à Nissan enquanto está em Paris nem sobre a Renault quando está em Tóquio. Ele mantém pastas diferentes para cada uma das montadoras
3) Delegar sempre que possível
Somente as decisões mais estratégicas — como a definição do Logan como uma plataforma para múltiplos lançamentos — ficam sob responsabilidade de Ghosn. Deliberações sobre o dia-a-dia da empresa ficam a critério de seus executivos
4) Dar um passo de cada vez
Em vez de tomar todas as resoluções de uma só tacada, ele prefere dividir o processo em diferentes etapas — assim, vai tomando várias decisões à medida que a discussão avança
5) Buscar informações com o maior número possível de pessoas (em todos os níveis)
Ghosn passa a maior parte do dia em conversas com executivos do grupo envolvidos nos mais diferentes projetos. Para colher detalhes sobre o desenvolvimento do Clio III, por exemplo, ele conversou até com os trainees da empresa.
Uma vez que as decisões foram tomadas, Ghosn dedica-se a outro de seus grandes talentos: cobrar resultados. "Uma decisão não vale nada se não for implementada", afirma. "Ela é 90% do trabalho." Onde quer que se encontre, ele aproveita para verificar se suas diretrizes estão sendo seguidas -- freqüentemente num tom percebido pelos subordinados como ameaçador. "A pressão muitas vezes é insuportável", conta um ex-executivo da Renault. "Todos trabalham no limite."
No início deste ano, o clima de tensão chegou ao extremo quando vieram à tona três casos de suicídio dentro da montadora francesa em apenas quatro meses -- um deles envolvendo um técnico às vésperas de ser promovido. Um relatório divulgado pela Confederação Geral de Trabalho da França aponta como causa possível (embora não a única) a enorme pressão que os funcionários vêm sofrendo desde o início da reestruturação. Segundo o sindicato, há uma cobrança cada vez maior na empresa para se produzir mais, com mais qualidade e a custos mais baixos. Ghosn criou uma comissão para avaliar as causas dos suicídios, mas reiterou que não voltará atrás em seu plano de ajustes na companhia. "Os franceses não estão habituados a trabalhar num ritmo frenético, eles ainda não digeriram a lógica da globalização", afirma Keeney.
Uma pesquisa recente realizada pela Universidade de Maryland mostrou que a França é o país mais avesso ao capitalismo entre as nações desenvolvidas. "Ghosn está tentando trazer a Renault à lógica do século 21", diz Keeney.
Comandar duas empresas que se encontram em estágios tão diferentes é um de seus maiores desafios. Na japonesa Nissan, a parte mais difícil do trabalho já foi feita. Uma profunda reestruturação implementada por ele seis anos atrás tirou a companhia da bancarrota e transformou-a numa das montadoras mais lucrativas do mundo. O processo, que incluiu a demissão de 21 000 funcionários, rendeu ao executivo o apelido de "matador de custos" e o transformou numa espécie de herói nacional, com direito até a virar protagonista de mangás, as tradicionais histórias em quadrinhos japonesas. Seu crescimento foi ancorado sobretudo no mercado americano, onde a montadora dobrou sua participação para cerca de 8%, segundo a consultoria americana J.D. Power and Associates, especializada no setor automobilístico.
A Renault não se encontra numa crise financeira. O principal problema da montadora francesa é uma certa letargia -- cuja conseqüência mais visível é a perda de espaço na Europa para competidores asiáticos. Em 2006, as vendas da montadora no Velho Continente caíram mais de 10%. Na França, seu principal mercado, a queda foi superior a 5%. A percepção do consumidor é que os modelos franceses são antiquados. No Brasil, um de seus mercados estratégicos, a Renault até agora não conseguiu deslanchar. A fábrica localizada em São José dos Pinhais, no Paraná, gera prejuízos desde que foi inaugurada, em dezembro de 1998. "Para lidar com tamanha discrepância nas duas empresas, Ghosn tem uma espécie de botão liga-e-desliga", afirma um executivo da Renault. "Ele é capaz de decidir sobre o lançamento de um produto numa montadora e sobre uma aliança estratégica na outra, sem titubear."
O plano de Ghosn para tirar a Renault do marasmo foi batizado de Contrato 2009. Lançado oficialmente em fevereiro do ano passado, o projeto prevê um aumento nas vendas da montadora da ordem de 800 000 veículos até 2009 e o lançamento de 26 carros. O objetivo é aumentar para 6% a margem operacional da companhia -- hoje na faixa de 2,5%. "Foram meses conversando com centenas de pessoas", diz Ghosn. "Tive de pesar com cuidado cada ponto desse projeto." Grande parte do sucesso do plano dependerá das vendas do Logan, o carro de baixo custo da Renault. Inicialmente, o Logan foi criado para atender aos países do Leste Europeu. Ghosn, porém, decidiu transformá-lo numa plataforma de múltiplos lançamentos, capaz de atender aos mercados no mundo todo. É dessa base que deve sair quase a metade dos novos modelos que a montadora lançará nos próximos anos.
A aposta de Ghosn
O Logan é o grande trunfo do executivo para melhorar os resultados da montadora francesa. Veja algumas inovações que conseguiram reduzir o custo do modelo, vendido atualmente na Europa por 7 000 euros.
Acabamento padronizado
Nas portas, a borracha utilizada na parte superior foi uniformizada. Na Renault e nos demais carros fabricados na Europa, essas borrachas são específicas para cada lado do carro
Simplicidade
O interior do carro leva peças grandes — chamadas monoblocos. A medida torna a instalação mais simples, rápida e barata (custa até metade do preço dos painéis encontrados em carros europeus, mais sofisticados)
Pouca tecnologia
O pára-brisa tem uma curvatura simples — diferente dos complexos ângulos que caracterizam os carros da Renault
Sem conforto
No modelo básico, não há ar-condicionado nem rádio (itens considerados de primeira necessidade na Europa)
Menos peças
O número de componentes empregado é até 60% menor que nos outros carros da Renault. O Clio, por exemplo, leva cerca de 600 componentes, ante cerca de 200 do Logan
Reaproveitamento
Peças e motores de versões mais antigas do Clio e do Modus, da Renault, e do Micra, da Nissan, foram utilizados no projeto
Embora analistas de mercado e investidores continuem confiantes na capacidade de discernimento de Ghosn -- segundo estimativas dos bancos Morgan Stanley e UBS, a aliança Renault-Nissan deverá vender 6,4 milhões de veículos neste ano, desbancando a Ford do terceiro lugar entre as maiores montadoras do mundo --, o executivo tem enfrentado alguns revezes nos últimos meses. As vendas mundiais da Renault caíram 4% em 2006 e os sinais de uma possível recuperação só devem começar a aparecer a partir do segundo semestre de 2007.
No Japão, a Nissan também acaba de mostrar seu primeiro tropeço. No terceiro trimestre fiscal de 2006, o lucro líquido da montadora japonesa foi 22% inferior ao do mesmo período do ano anterior. Para tentar contornar a crise, o executivo acabou abandonando suas funções como responsável pelas operações americanas no dia 16 de março para dedicar-se exclusivamente à matriz. Os problemas parecem não abalar a incrível autoconfiança de Ghosn. "É um momento delicado, mas nada fora do previsto", diz. Ele avisou que não pretende alterar a estratégia de renovar continuamente a linha de produtos das duas empresas que comanda. "A indústria automotiva vive de lançamentos, e até agora Ghosn acertou nesse ponto", diz um analista de um banco de investimentos estrangeiro, especializado no setor. "Vamos ver se ele vai continuar tomando as as decisões certas."