quarta-feira, 23 de maio de 2007

O superpresidente

Como o brasileiro Carlos Ghosn, depois de salvar a Nissan do abismo, transformou-a numa das montadoras mais rentáveis do setor automobilístico -- e se consagra como um dos executivos mais brilhantes do planeta
Por José Roberto Caetano

No minúsculo Tar Tar, um dos inúmeros restaurantes encravados no subsolo dos prédios de Ginza, um fervilhante bairro da região central de Tóquio, Ito Hiroyuki, de 36 anos, faz as vezes de dono, cozinheiro, garçom e sommelier. Enquanto sorve de uma taça, ele sugere vinhos aos fregueses, não mais que uma dezena, para acompanhar as massas que prepara. Ao ser indagado se conhece Carlos Ghosn, o executivo brasileiro que comanda a Nissan, a terceira maior montadora japonesa, com receita anual de 56 bilhões de dólares, Hiroyuki arregala os olhos e faz um gesto que demonstra respeito. Por que a reverência? "Porque ele produziu resultados", diz.
A breve expressão de Hiroyuki resume o histórico de sucesso no Japão de Ghosn, um executivo nascido em Rondônia, filho de mãe francesa e pai descendente de libaneses. Tal como Hiroyuki, muitos outros japoneses acompanharam a trajetória de Ghosn nos últimos anos e se tornaram seus admiradores. Em maio de 1999, ele desembarcou no QG da Nissan em Tóquio com a missão quase impossível de salvar do abismo a empresa, castigada por seis anos consecutivos de prejuízo e endividada em 17 bilhões de dólares. Fora enviado especialmente para cumprir essa tarefa pela cúpula da francesa Renault, que acabara de se tornar a controladora, adquirindo 36,6% do capital da Nissan.
A chegada de um gaijin ("estrangeiro" em japonês) para tentar reerguer uma das empresas-símbolo do Japão se deu cercada de reservas -- os próprios japoneses já haviam falhado em três tentativas durante a década. A missão também foi vista com ceticismo por alguns especialistas do setor e considerada a mais arriscada da indústria automobilística mundial. Diante de Ghosn estava não apenas um negócio em acelerado declínio, com produtos envelhecidos e gestão ineficaz, mas ainda uma barreira cultural aparentemente intransponível.
Quatro anos depois, os resultados obtidos por Ghosn vão além da salvação da Nissan. Hoje, ele está à frente de uma das mais rentáveis montadoras do mundo. Ghosn converteu o prejuízo de 5,6 bilhões de dólares registrado em 1999 num lucro de 4 bilhões no exercício concluído em março passado. Com isso, a Nissan está proporcionando aos acionistas um retorno de 19,5% sobre o capital investido. A margem de lucro operacional, um dos indicadores mais importantes das montadoras, alcançou 10,8% sobre a receita -- a média mundial do setor é de cerca de 4%. "A rentabilidade da Nissan é um fenômeno", afirma o americano Stephen Usher, analista do setor automobilístico do banco JPMorgan. "Está próxima à da Porsche, uma fabricante pequena, de supercarros, voltada para um nicho sofisticado." Na bolsa de Tóquio, enquanto o índice Nikkei -- uma média dos papéis das principais empresas cotadas -- caiu 50% de 1999 até o final de março deste ano, as ações da Nissan dobraram de preço.
O valor de mercado da participação francesa no capital, agora de 44%, superou o valor total da própria Renault. A recompensa que Ghosn receberá por ter se saído bem na operação de ressuscitar a Nissan será mais uma missão dura. Ele já está escalado para substituir, em meados de 2005, o suíço Louis Schweitzer no posto de executivo-chefe do grupo Renault. Será uma inversão curiosa. De aposta arriscada para a Renault, a Nissan se transformou, na gestão de Ghosn, na principal fonte de lucro da montadora francesa. O desafio será fazer a Renault, hoje com uma rentabilidade de pálidos 3,3%, ser tão eficiente quanto sua parceira japonesa. Os números da Nissan surpreenderam os cerca de 400 analistas de investimento e 250 jornalistas reunidos em Tóquio no dia 23 de abril para assistir a uma apresentação de resultados. Num salão do luxuoso Akazaka Prince Hotel, Ghosn, um sujeito à primeira vista discreto, se transforma numa espécie de showman. "A revitalização da Nissan é uma realidade", diz ele. "Não só voltamos à competição global como estamos entre os que ditam o ritmo." A consagração perante a mídia e o público é algo a que Ghosn se acostumou. Desde que, já no segundo ano de gestão, conseguiu conduzir a Nissan de volta ao lucro, sua figura passou a ser reverenciada pelos japoneses.
À medida que sua estratégia foi se provando certeira, com indicadores de desempenho cada vez mais sólidos, o culto foi crescendo. Ghosn passou a ser reconhecido não apenas nos escritórios e fábricas da Nissan como em qualquer local público que aparecesse. Pedidos de autógrafo e solicitações para tirar fotos a seu lado se tornaram comuns. Sua vida, suas realizações e idéias serviram de base para a publicação de 12 livros, incluindo uma autobiografia, e um mangá, a tradicional história em quadrinhos japonesa. Ghosn é, afinal, o superpresidente.
Na noite do mesmo 23 de abril, o gaijin Ghosn deu entrevista a uma TV japonesa. A certa altura, a repórter lançou a pergunta: "Se estivesse no lugar do primeiro-ministro Junichiro Koizumi, o que o senhor faria para tirar nossa economia da letargia?" (O Japão enfrenta a taxa de desemprego mais elevada dos últimos 50 anos, com 3,8 milhões de pessoas sem trabalho, o equivalente a 5,4% da população ativa.) Diante da saia-justa, Ghosn saiu pela tangente, como costuma fazer nessas ocasiões: "Não há nenhuma chance de eu vir a ser primeiro-ministro do Japão".
Se a virada da Nissan pode servir de exemplo para uma economia letárgica, é difícil dizer. Mas é certo que Ghosn, aos 49 anos, se projetou como um vencedor -- um dos mais brilhantes e ousados representantes do cada vez mais volátil mercado mundial de altos executivos. Mais que um cortador de custos, ele é um criador de valor. Sua fórmula para reavivar a Nissan, ao mesmo tempo derrubando antigos dogmas locais -- como o emprego vitalício e as relações incestuosas com fornecedores -- e salvaguardando a identidade da empresa, chama a atenção do mundo corporativo dentro e fora do setor automobilístico. Em 25 de abril, a Sony, encrencada com os piores resultados em oito anos, comunicou que Ghosn será um dos conselheiros externos a partir de junho. "Quero humildemente aprender com ele sobre os meios de realizar reformas estruturais e manter a motivação dos empregados", disse Nobuyuki Idei, presidente do conselho de administração da Sony.
Para Ghosn, a entrada no conselho da Sony será a segunda experiência do gênero. Ele já é conselheiro da americana Alcoa, a maior fabricante mundial de alumínio. Lá, tem assento numa mesa comandada por Alain Belda, outro brasileiro que ganhou projeção fora do país. Esse tipo de contato, com executivos e empresários de influência global, é, segundo Ghosn, sua principal fonte de aprendizado e reciclagem. "Nos conselhos posso seguir de perto o que outras grandes empresas estão fazendo, como melhoram a qualidade, como desenvolvem a gestão", diz ele. "Também encontro pessoas como Bill Gates e Michael Dell, e aproveito a oportunidade para saber qual é a base da excelência de cada um." A seguir, algumas das principais lições que o mundo corporativo e os executivos brasileiros podem aprender com Ghosn e o caso Nissan.
A ARRUMAÇÃO DA CASA
Convocado por Schweitzer, Ghosn chegou para comandar a Nissan já com um histórico de reestruturador. Havia sido diretor-geral no Brasil da operação da francesa Michelin, fabricante de pneus, enfrentando a hiperinflação dos anos 80. Em 1991, na presidência da Michelin nos Estados Unidos, conduziu a fusão com a americana Goodrich. Contratado pela Renault em 1996, foi para a França e pegou pela frente a incorporação da Volvo, participando da decisão de fechar fábricas na Europa -- o que lhe valeu o ódio dos sindicatos e o apelido de "matador de custos".
Na Nissan, Ghosn encontrou uma empresa que desde o início da década registrava margens operacionais negativas ou pouco superiores a 1%. No mercado japonês, já havia cedido às concorrentes 15 pontos percentuais de participação desde os anos 70, quando alcançara um pico de 33%. Seus produtos eram considerados envelhecidos e a imagem da marca estava desgastada. Com um sistema de gestão ultrapassado e um endividamento bilionário, a Nissan não tinha saída: ou mudava ou perecia. "Todo mundo estava preocupado e sabia que se nada fosse feito a empresa acabaria. Mas ninguém tinha a capacidade de dizer o que estava errado", diz Norio Matsumura, executivo responsável pela operação na América do Norte. "Ghosn chegou, decidiu a direção, envolveu as pessoas na ação e monitorou os resultados."
Ghosn rapidamente pôs em prática um vigoroso plano trienal de saneamento financeiro e recuperação da competitividade. Batizado de Plano de Renascimento da Nissan, teve como metas, ao mesmo tempo, aliviar o endividamento e levantar recursos para reforçar os ativos que pudessem gerar vendas e lucros. O orçamento para pesquisa e desenvolvimento foi reforçado em 40% em quatro anos, segundo Nobuo Okubo, vice-presidente executivo e supervisor de engenharia e desenvolvimento da Nissan. Enquanto outras áreas enxugavam os quadros, no departamento de pesquisa houve 2 000 contratações. "Não podíamos trabalhar primeiro para reduzir os custos e deixar para crescer depois", diz Ghosn. "Era preciso fazer as duas coisas simultaneamente." Na primeira etapa, porém, prevaleceu o perfil do matador de custos.
Para eliminar o excesso de capacidade, ele anunciou o fechamento de cinco fábricas e o corte de 21 000 postos de trabalho dos 148 000 existentes globalmente em março de 1999. Negócios que não tinham a ver com o foco automobilístico foram passados adiante. À equipe de compras da Nissan, Ghosn impôs a meta de redução geral de 20% no orçamento com fornecedores. Os resultados apareceram logo no primeiro ano do Plano de Renascimento. Em outubro de 2000, Ghosn já pôde anunciar a volta ao lucro. No ano seguinte, todas as metas do plano estavam cumpridas, com antecipação.
PLANO NISSAN 180: A NOVA ETAPA
Reestruturada a operação, Ghosn partiu para a concepção de um segundo plano trienal, anunciado um ano atrás. Focado em crescimento com aumento da rentabilidade, foi batizado de Nissan 180. O número se refere a três compromissos. O 1: a venda global de 1 milhão de carros a mais no ano fiscal de outubro de 2004 a setembro de 2005, em comparação com o volume de 2001. O 8: margem de lucro operacional de 8% sobre a receita. O zero: a anulação da dívida líquida do negócio de automóveis. Dos três compromissos, só resta cumprir o aumento de vendas. Algo pode comprometer a entrega do que Ghosn prometeu? Ele considera apenas fatores externos à empresa como possíveis pedras no caminho: enfraquecimento das economias japonesa, européia e americana e acirramento da guerra de preços nos mercados. "Há sempre o risco, como já ocorreu com outras companhias, de perder a concentração com o sucesso conseguido", diz Usher, do JPMorgan. "Mas a Nissan parece estar focada em sustentar a rentabilidade e se tornar ainda mais forte." Ghosn, por sua vez, não admite que fatores internos possam atrapalhar o rumo da empresa. "Preciso dedicar atenção para que as pessoas não se acomodem e achem que agora podemos dar uma paradinha", diz ele. "Complacência é a primeira coisa que tenho de combater a cada dia."
RESPEITAR A IDENTIDADE E DAR O EXEMPLO
Para superar o ceticismo e o temor com que foi recebido ao assumir o comando operacional da Nissan, Ghosn estabeleceu alguns princípios. O primeiro deles: cada empresa deve preservar a identidade. O tom dado: trabalhar junto, mas de modo que a Renault continue Renault e a Nissan continue Nissan. No envolvimento dos funcionários em torno dos objetivos, Ghosn utilizou o compromisso pessoal -- algo de grande efeito na cultura japonesa. Prometeu publicamente que, se no primeiro ano do plano a companhia continuasse a dar prejuízo, se demitiria juntamente com os membros do comitê executivo. Ghosn também inspirou respeito pela dedicação ao trabalho. Impôs a si mesmo uma jornada que ia das 7 da manhã às 11 da noite.
Pai de três filhas, a mais velha nascida no Rio de Janeiro, e de um menino, ele afirma que já maneirou a rotina. "Agora estou mais regulado, faço o horário das 7 e meia às 9", diz, entre risos. Na fábrica de Oppama, uma das quatro da Nissan no Japão, situada a 65 quilômetros de Tóquio, trabalham mais de 4 000 funcionários, incluindo o pessoal do centro de pesquisa e da divisão de engenharia. Quando souberam que receberiam a visita de Ghosn, um ano e meio atrás, os operários se preocuparam em dar uma geral para tornar a área de produção mais limpa e apresentável. "As pessoas dos escritórios sentem mais a velocidade das mudanças", diz Masahiko Terasaki, gerente administrativo de Oppama. "No chão de fábrica é diferente, quanto mais ocupadas as pessoas, mais motivadas elas se sentem."
Ao longo da linha 2, onde são montados modelos March e Cefiro, ainda estão pendurados peque nos vasos com plantas e bandeirinhas do Japão e da França. O culto a Ghosn é visível. Numa parede se encontra afixado o seu autógrafo numa caricatura feita por um funcionário. No final da linha de montagem, pendem do teto duas grandes pipas, ou takôs, uma com uma figura japonesa tradicional e outra com o rosto de Ghosn. "A maior realização do senhor Ghosn foi reestruturar a mentalidade das pessoas na Nissan", diz Matsumura.
A OXIGENAÇÃO DOS QUADROS E A PREPARAÇÃO PARA O FUTURO
No campo do trabalho, a Nissan de hoje é bem diferente da empresa que Ghosn assumiu há quatro anos. Nada de emprego vitalício. Nada de promoções por tempo de serviço. "O burocratismo e a política de compensação por senioridade eram pontos fracos da nossa empresa", diz Kuniyuki Watanabe, um engenheiro de 54 anos, com 30 de casa e atual vice-presidente sênior de desenvolvimento de recursos humanos. "Ghosn me chamou e disse que teríamos de ser mais flexíveis e passar para um sistema de remuneração por resultados."
Outra diferença é a proliferação de profissionais recrutados fora da empresa, para oxigenar os quadros. Um exemplo é o do engenheiro e relações-públicas Shinji Kuroiwa, de 32 anos, um dos responsáveis pela comunicação internacional da Nissan. Kuroiwa chegou à empresa em janeiro deste ano, vindo da subsidiária japonesa da DaimlerChrysler. "Três anos atrás eu não trabalharia na Nissan", diz ele. "Hoje, ela é mais atraente que a DaimlerChrysler." A Nissan também passou a buscar profissionais nos Estados Unidos e na Europa, como o francês Bernard Long, vice-presidente internacional de recursos humanos, trazido da Renault. "Alguns anos atrás, isso era impensável", diz Watanabe. "Os gestores de uma divisão eram somente pessoas que tinham experiência na própria divisão."
Ghosn combinou a quebra de paradigmas e a injeção de sangue novo com um planejamento para preparar a próxima geração de líderes da Nissan. Está especialmente empenhado nesse programa, voltado para funcionários que hoje têm de 30 a 45 anos e demonstram potencial para se tornar diretores e vice-presidentes. A lista, secreta e reavaliada mensalmente pelo comitê executivo da empresa, é hoje de 500 candidatos, entre os quais japoneses, europeus, americanos e brasileiros. "Quero ter pelo menos 1 000 candidatos para poder fazer uma boa escolha de 30 altos executivos daqui a alguns anos", diz Ghosn. "O critério é o desempenho, o histórico de realizações, e não o fato de ser japonês ou estrangeiro, ser homem ou mulher, ou ter saído de uma universidade famosa." O perfil básico dos candidatos inclui uma experiência de pelo menos cinco anos na empresa, competência comprovada em uma área, vocação para gestão e habilidade para lidar com tecnologia.
Além disso, a indicação de um candidato precisa ter o apoio de pelo menos dois membros do comitê executivo. "Assim, com uma seleção rigorosa, vamos preparando o futuro e transformando a Nissan numa empresa realmente voltada para resultados", afirma Ghosn.
FOCO NA RENTABILIDADE E NÃO NOS VOLUMES
Sobreviver à etapa de corte de custos -- sobretudo sabendo-se como eles foram cortados -- coloca Carlos Ghosn na galeria dos superexecutivos. Mas certamente esse não é seu maior mérito. Melhorar a rentabilidade da empresa: esse sim era o grande desafio. Nos Estados Unidos, a divisão Infiniti da Nissan, concorrente na faixa de utilitários e carros de luxo com BMW, Mercedes-Benz e Lexus, da Toyota, operava até 1999 concedendo altos incentivos aos consumidores para tentar compensar sua imagem de fora de moda. Quatro anos depois, a Infiniti deixou de ser o patinho feio e se tornou a marca que menos incentivo oferece na categoria -- uma média de 700 dólares, enquanto Mercedes e Toyota-Lexus dão perto de 3 000. As vendas da Infiniti caíram? Ao contrário. Com o lançamento de novos produtos, de design modernizado, como a picape Murano, houve um crescimento de 35% no volume de vendas em 2002, para quase 96 000 unidades no varejo. "Nossas vendas são mérito dos próprios produtos", diz Ghosn. "Nossa estratégia continuará a ser otimizar a rentabilidade em vez de maximizar volumes."
A política austera em relação à guerra de preços foi estendida aos carros com a marca Nissan. A média de descontos por veículo oferecida pela Nissan, de 1 500 dólares, é inferior à da Toyota, que cede mais de 2 000. As americanas GM, Ford e Chrysler praticam descontos de 3 000 a 4 000 dólares por carro. "Não queremos vender produtos só pelo preço", diz Matsumura, responsável pela operação nos Estados Unidos. "No passado fizemos isso, mas hoje queremos criar um círculo de valor."
A ORIENTAÇÃO PARA O CLIENTE E A REVITALIZAÇÃO DOS PRODUTOS
Para poder limitar sua política de descontos e fugir da guerra de preços, a Nissan teve de rever a relação com o mercado. "Ghosn estabeleceu dois pontos para nós, a orientação para o lucro e a orientação para o cliente", diz Matsumura. Aos engenheiros, Ghosn determinou que revisassem as especificações das peças, muitas vezes severas demais. "Quando Ghosn nos visitou, disse que a tecnologia deveria servir para o consumidor, não para o engenheiro", afirma Hiroshi Okuzumi, gerente de planejamento do centro de pesquisa da Nissan. "É uma proposta bem razoável."
A orientação de foco no cliente se estendeu tanto à engenharia e ao desenvolvimento dos produtos quanto aos processos de venda e marketing. A Nissan não costumava pesquisar o que o consumidor queria encontrar nos carros. Confiava no reconhecimento de quase 70 anos da marca no Japão e mais de 40 nos Estados Unidos. "Acontece que durante a década de 90, por causa dos problemas financeiros, ganhamos uma imagem negativa", diz Matsumura. "As pessoas foram ficando com a impressão de que não podíamos lançar produtos competitivos." A saída foi começar pelo básico: com pesquisas para identificar o público-alvo e os valores que precisariam ser transmitidos aos clientes. Motores potentes e linhas esportivas mais agressivas, demandas dos consumidores americanos, começaram a sair das pranchetas.
O símbolo do rejuvenescimento da marca Nissan no mercado americano é o conversível 350Z, ou simplesmente Z -- no Japão chamado de Fairlady Z. Trata-se de um lançamento inspirado num campeão de vendas antigo -- o Datsun 240Z, da década de 70, uma espécie de cult para os aficionados de automóveis. "Os carros da Nissan cativam os consumidores porque são como jóias visuais", disse Csaba Csere, editor da revista especializada Car and Drive num recente artigo da revista Newsweek. O Z tornou-se o esportivo mais vendido nos Estados Unidos, com demanda de 23 000 unidades em oito meses de mercado e fila de espera nas concessionárias. Com a boa receptividade a seus novos carros, a Nissan conseguiu em 2002 aumentar em 1% o volume de vendas nos Estados Unidos e no Canadá, para 726 000 unidades -- enquanto o mercado caiu quase 2%. Melhor que isso: o lucro operacional na região cresceu mais de 50%.
Na Europa, contudo, a marca não vai bem. No ano passado, as vendas caíram 3,8%. "O mercado europeu continua a ser um desafio para nós", diz Ghosn. "Mas estamos animados com o lançamento do Micra, feito em janeiro." O maior avanço, por regiões, se deu no Japão, onde a Nissan registrou aumento de 14,3% no ano passado. Nesse período, o mercado japonês teve um esquálido avanço de 1% nas vendas.
O REFORÇO DO DESIGN
· O que mudou para que a Nissan, cujo portfólio estava quase totalmente defasado, passasse a er produtos atraentes num prazo relativamente curto de tempo? "Trouxemos gente da Renault para melhorar o processo de desenvolvimento", afirma Ghosn. O responsável por esse trabalho é o francês Patrick Pelata, a quem foi entregue a chefia da área de desenvolvimento de produtos. "E estabelecemos uma parede entre os centros de design das duas empresas, porque não queríamos que a criatividade da Nissan fosse influenciada pela da Renault", diz Ghosn.
Mesmo preservando a base japonesa, o processo criativo da Nissan tornou-se mais cosmopolita. Além de Pelata, a equipe recebeu, há três anos, o reforço de Shiro Nakamura, projetista com carreira feita nas subsidiárias européia e americana da japonesa Isuzu. Atualmente, Nakamura comanda o centro de design da Nissan em Londres, onde trabalha com 50 modelistas e projetistas de diversas nacionalidades. Os investimentos em desenvolvimento de produtos foram ampliados de 1,9 bilhão de dólares em 1999 para 3 bilhões neste ano. A velocidade da criação foi acelerada -- o prazo para um novo carro sair da prancheta e ir ao mercado foi cortado de cinco para três anos. Nos últimos quatro anos, os centros de design da Nissan desenvolveram 21 novos produtos e reverteram a imagem negativa da marca.
AS VANTAGENS DE UMA BOA ALIANÇA
Há mais um segredo para o aumento da rentabilidade: o compartilhamento de plataformas e componentes. No caso do Z, a plataforma é uma adaptação da empregada no utilitário esportivo Infiniti e o motor é o mesmo do sedã Altima. Numa faixa de volume mais amplo, aproveitando a aliança com a Renault, a Nissan compartilha no modelo compacto March (chamado Micra no mercado europeu) a mesma plataforma do Clio. Dessa forma, as duas montadoras repartem o investimento de 4 bilhões de dólares necessário para o desenvolvimento de uma nova plataforma. Até 2010, Renault e Nissan deverão contar com dez plataformas e oito motores de uso comum.
O compartilhamento de fábricas e estruturas de distribuição é outra forma de sinergia entre a Renault e a Nissan. Para lançar no Brasil, um ano e meio atrás, o primeiro produto montado localmente, a picape Frontier de cabine dupla, a Nissan investiu 170 milhões de dólares, uma quantia relativamente modesta. A solução foi dividir linhas de produção com a Renault em São José dos Pinhais, no Paraná. Na fábrica, com capacidade para 40 000 unidades por ano, são montados lado a lado as Frontier e os furgões Master, da Renault. "Teríamos de gastar quatro vezes mais e demoraríamos mais tempo para operar no Brasil se não fosse a aliança", diz Ghosn. Há duas semanas, a Nissan fez seu segundo lançamento no país, a versão cabine simples da Frontier. Por enquanto, produzir grandes volumes não está em discussão no Brasil. Neste ano, a empresa pretende vender 8 800 picapes no mercado brasileiro. Em junho, a Nissan lançará mais um produto, o utilitário esportivo XTerra.
Se no Brasil a Renault foi o trampolim para a chegada da marca japonesa, no México, onde a Nissan está estabelecida desde meados dos anos 60 e conta atualmente com 20% do mercado, ocorreu o inverso. "Estamos sempre procurando aproveitar a força que o parceiro tem em cada região", diz Toshiyuki Shiga, vice-presidente sênior recém-encarregado de uma divisão global que cobre todos os mercados excetuando Japão, Estados Unidos e Europa. Shiga é membro de um dos times mistos constituídos por executivos da Nissan e da Renault para descobrir sinergias e tocar projetos comuns.
A divisão dos países emergentes, na qual está o Brasil, teve a importância elevada por Ghosn no Plano Nissan 180. São mercados que ele considera que vão crescer muito nos próximos três anos. "Até agora, as prioridades eram Estados Unidos, Japão e Europa", diz. "Precisamos transformar os processos da empresa para que os países emergentes não fiquem sempre sendo os últimos da lista." O sinal do novo status foi a nomeação de Shiga, cotado como um de seus possíveis sucessores (veja quadro acima). Com o novo cargo, Shiga recebeu uma meta: contribuir com 300 000 carros para o objetivo global de vender 1 milhão de unidades a mais em 2005. No ano passado, foram vendidos nos países emergentes 755 000 carros -- 4 400 deles no Brasil. A Nissan também está entrando na corrida para ganhar espaço no mercado chinês, o de crescimento mais rápido no mundo.
Está iniciando uma sociedade para produzir meio a meio com uma empresa local, a Dong Feng. O objetivo é aumentar as vendas da marca de 77 000 carros em 2002 para 550 000 em 2006.
O IMPACTO EXTERNO
Os resultados obtidos por Ghosn na Nissan estão provocando os mais variados impactos. No Japão, segundo um estudo da consultoria Booz Allen & Hamilton, a taxa de demissão de executivos-chefes por falhas de desempenho decuplicou de 2001 para 2002. A consultoria atribui isso à adesão gradual dos japoneses a um estilo de governança ocidental, ajudada por um novo código comercial que encoraja as empresas a ter representação estrangeira em seus conselhos.
O efeito Ghosn é diretamente mencionado. "O renascimento da Nissan, sob a liderança de Carlos Ghosn, persuadiu muitas companhias japonesas de que uma transformação estratégica, benéfica e rápida não é um sonho impossível", conclui o estudo. Na indústria automobilística é possível identificar um contágio de práticas de negócio. "A Nissan se tornou a mais eficiente empresa japonesa em termos de compras, deixou o ambiente competitivo mais difícil e está obrigando a Toyota a repensar as estratégias", afirma Usher, do JPMorgan. Segundo ele, outras empresas, japonesas, européias e americanas, também são influenciadas. "O plano de reestruturação da Ford tem bases parecidas com o da Nissan", diz Usher.
DE UM DESAFIO A OUTRO
Como isso baterá em Paris, onde fica a sede da Renault? Em meados de 2005, quando assumir o comando do grupo francês, Ghosn deverá trombar com novos obstáculos. O sucesso obtido na Nissan não lhe garante uma recepção positiva. "No complicado ambiente corporativo francês, as pessoas vão olhá-lo de um jeito diferente", diz Usher. "Lembrarão que ele reduziu o número de empregos na Nissan, fechou fábricas, mexeu com fornecedores." Ghosn precisará se cercar de um time muito confiável para tocar os planos e as estratégias nas duas empresas ao mesmo tempo.
Para a Renault e a Nissan, a continuidade da união é uma vantagem comparativa que pode valer a permanência no jogo. "A aliança Renault-Nissan é um caso único na indústria automobilística mundial em que a mistura cultural, até agora pelo menos, foi bem gerenciada e está se transformando em resultados significativos", diz Ghosn. "No jogo da consolidação do setor, estaremos entre as empresas lucrativas, que geram valor, e podem ir em frente." Mas os resultados da Renault não andam tão brilhantes quanto os da Nissan, não é mesmo? "Ainda não", diz Ghosn, com uma gargalhada. "Ainda."

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